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Violência política de gênero: conceitualização e tipificações

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Violência política de gênero: conceitualização e tipificações


A pesquisadora Francileide Araujo recomenda cinco leituras que contribuem para o combate à violação de direitos políticos por motivos de gênero e raça

A violência política não é algo inédito na trajetória política de parlamentares democraticamente eleitas. Foi, inclusive, uma das principais características de períodos como a ditadura militar (1964-1985), onde a tortura, a censura, o sequestro e o assassinato de pessoas que eram contra o golpe e reivindicavam a volta do regime democrático no Brasil aconteciam de modo institucionalizado, em ações orquestradas e executadas pelas forças do Estado, com apoio de instituições como igrejas, mídia, setores privados e com financiamento internacional, que legitimavam o período antidemocrático no Brasil.

A instauração da Comissão da Verdade aconteceu somente em 2011, quase 50 anos após o golpe militar. A Comissão foi criada e instituída pelo governo da ex-presidenta Dilma Rousseff do PT (Partido dos Trabalhadores), torturada e presa de modo ilegal durante a ditadura, e posteriormente, em 2016, deposta da Presidência da República atravées de um golpe misógino, articulado por vários setores da sociedade, semelhante com o que aconteceu em 1964.

A demora para instaurar uma Comissão contribuiu com a impunidade de militares e políticos que praticavam essas violências na época, assim como atuou na ausência de uma memória coletiva sobre o terror e o fascismo do período e consequentemente a naturalização da violência nos espaços políticos. Essa ausência de memória e desinformação sobre o período foi o caminho para que o cenário acontecesse de modo semelhante em 2016 contra Dilma Rousseff, primeira mulher eleita para presidência do Brasil.

Quando olhamos para essa violência política ressaltando suas relações com o contexto social brasileiro, percebemos que ela não se manifesta de uma única forma, podendo se apresentar sob múltiplas facetas, racista, capacitista, transfóbica e LGBTfóbica, assim como sua instrumentalidade para afastar mulheres, pessoas negras e indígenas e LGBTQIA+ dos espaços de poder e tomada de decisão, servindo como instrumento para conservar esses espaços de modo que não atendam às demandas sociais dos grupos minorizados e marginalizados.

A violência política de gênero, portanto, fere os valores democráticos por afastar mulheres dos espaços de poder, deixando esses espaços sob domínio de pessoas que não representam as ideias e a presença de parte do eleitorado, que é majoritariamente de mulheres e pessoas não brancas.

Género y Violencia Política en América Latina: Conceptos, debates y Soluciones

Mona Lena Krook e Juliana Restrepo Sanín (Política y Gioverno, 2016)

Esse artigo, talvez o mais citado nas discussões sobre violência política de gênero, aborda a questão de modo didático, apresentando uma discussão conceitual, com exemplos de trajetórias políticas de mulheres latinas, ilustrando como as discussões sobre violência política de gênero caminharam na América Latina nos últimos anos. Mona Krook, cientista política norte-americana e Juliana Sanín, cientista política mexicana, apresentam o contexto de violência política contra as mulheres que levou a América Latina discutir sobre essas práticas nos espaços parlamentares. Elas apontam que essa movimentação também é um reflexo do aumento expressivo de representação de mulheres na política.

É importante ressaltar que na segunda metade do século 20 vários países latinos passaram por ditaduras militares, vivendo por anos um sistema político fascista e antidemocrático. A violência política passou a ser uma das maiores sequelas deste período, bem como sua naturalização.

No artigo, é apresentado o conceito de violência política de gênero e os tipos de violência, que elas caracterizam como violência física, violência psicológica, violência inter-relacionada, violência simbólica e violência econômica. Algumas legislações latinas, conforme citações das autoras, apresentam outros tipos de violência, como a violência política eleitoral, violência sexual e assédio moral.

Elas compreendem que a violência política de gênero é uma tática utilizada para afastar as mulheres da política, reforçando como essa violência fere os valores democráticos e a necessidade de entidades internacionais e governos nacionais se posicionarem e responsabilizar autores dessas violências.

Golpe na perspectiva de gênero

Linda Rubim e Fernanda Argolo (orgs.) (Edufba, 2018)

O livro reconstrói, com a perspectiva de gênero, o percurso do golpe que destituiu a ex-presidenta Dilma Rousseff, primeira mulher eleita para presidência do Brasil, do executivo federal. O livro, organizado pelas pesquisadoras Linda Rubin e Fernanda Argolo, contém artigos de pesquisadoras, parlamentares e ativistas, tais como Céli Regina Jardim Pinto, Clara Araújo, Claudia Leitão, Eleonora Menicucci, Flávia Biroli, Maíra Kubik Mano, Marcia Santos Macedo, Márcia Tiburi, Marielle Franco, Mary Garcia Castro, Nilma Lino Gomes, Olívia Santana e Vanessa Grazziotin, que abordam sobre várias perspectivas como o processo de impeachment de Dilma Rousseff foi uma articulação midiática-política-empresarial, que teve como principal combustível a misoginia e o sexismo.

Na obra, a autora Flávia Biroli escreve um artigo exclusivo sobre a misoginia e a violência política no processo, apresentando como a mídia compartilhou, sem responsabilidade, e produziu várias violências políticas contra Dilma, usando de estereótipos sexistas para atacar sua imagem pessoal e política.

Todavia, o livro inteiro aborda a violência política que Dilma foi vítima desde sua campanha eleitoral de 2010, expondo o modo como seus adversários, companheiros partidários, suas alianças, a mídia, o setor privado e a sociedade civil a violentavam constantemente como base na misoginia e no sexismo. O livro assume também o papel de responder algumas questões pertinentes em relação ao golpe de 2016, como o porque chamamos de golpe e não impeachment, e como todas as justificativas para o processo se esbarram com a violência política de gênero.

Feminicídio político: um estudo sobre a vida e a morte de Marielle

Renata Souza (Cadernos de Gênero e Diversidade, 2020)

Neste artigo, Renata Souza (Deputada Estadual pelo Rio de Janeiro e ex-assessora de Marielle Franco), apresenta os resultados da pesquisa desenvolvida no pós-doc no Programa de Pós-Graduação Mídia e Cotidiano da UFF (Universidade Federal Fluminense). Ela propõe a formulação inédita do conceito de “feminicídio político” com a finalidade de “caracterizar, categorizar, denominar e classificar a execução sumária da vereadora Marielle Franco”. Trata-se também de uma autoetnografia da autora, uma mulher negra, carioca e com uma trajetória política de mais de 20 anos ao lado de Marielle Franco e os atravessamentos da violência política de gênero em suas trajetórias políticas.

O artigo também aborda a visibilidade e a invisibilidade que a mídia oferece a mulheres negras que ocupam os espaços de poder e tomada de decisão, discutindo a compreensão política sobre representatividade. Tratando-se de uma autoetnografia, a autora usa a sua trajetória política e seu conhecimento empírico como método para discutir a vivência de mulheres negras e periféricas na política, especialmente na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, onde cumpre mandato desde 2019, e nos movimentos sociais, ressaltando a importância das mulheres negra na luta política do Brasil, característica de Marielle Franco, sendo um dos seus legados para as mulheres negras e LBTs.

Sua experiência no campo político também vem acompanhada de outras trajetórias de mulheres negras e LBTs, como Talíria Petroni, Dani Monteiro e Mônica Francisco, que identificam a violência política em suas trajetórias. Através desses relatos e a invisibilidade dessas pautas, a autora enfatiza a importância e urgência de elaborar formalização do conceito de “feminicídio Político”, reforçando que se tratando da violência de gênero e dos constantes assassinatos de lideranças femininas no Brasil, ela afirma que “o machismo e o racismo são gatilhos mortais para mulheres negras”.

Debaixo do tapete: a violência política de gênero e o silêncio do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados

Tássia Rebelo de Pinho (Revista Estudos Feministas, 2020)

É importante discutir a violência política de gênero em todos os espaços, inclusive nos espaços institucionais. Enquanto a pauta da violência política de gênero ganhava espaço internacionalmente, principalmente em países latinos como Bolívia e México, no Brasil a pauta sempre foi invisibilizada, como se não houvesse essa prática na política brasileira. Nesse contexto, a pesquisadora Tássia Pinho investigou como os casos de violência política denunciados pela grande mídia e por parlamentares no Conselho de Ética e Decoro da Câmara Federal, para observar como eram investigados e julgados pelo Conselho.

Parte do resultado dessa investigação esbarra no problema da sub-representação de mulheres na política. No ano de 2018, foram eleitas 77 deputadas, número histórico que levou as mulheres a serem 15% na Câmara, a título de comparação, nas eleições de 2014, foram 55 mulheres eleitas, correspondendo a 10% das 513 cadeiras. Nas últimas eleições, em 2022, esse número subiu de modo bem tímido, elevando as eleitas para 91 mulheres ou seja, 17% da Câmara Federal, sendo alcançado o número histórico de 30% das eleitas serem mulheres pretas e pardas, além de elegermos, por São Paulo e Minas Gerais, as duas primeiras deputadas transexuais, sendo elas Erika Hilton e Duda Salabert, respectivamente.

Essa sub-representação, segundo a autora, afeta o processo de responsabilização em casos de violência política, pois as mulheres são minoria no Conselho por conta da baixa ocupação de mulheres na política. Ela argumenta que a ausência de mulheres comprometidas com os direitos das mulheres faz com que as decisões tomadas sejam injustas e de cunho pouco democrático. Portanto, se mais mulheres ocupassem a política institucional e consequentemente o Congresso Nacional, haveria mais seriedade e justiça no julgamento desses casos, ressaltando também a urgência de preencher a lacuna acadêmica e social sobre violência política de gênero no Brasil.

Sempre foi sobre nós: relatos da violência política de gênero no Brasil

Manuela D’Ávila (org.) (Rosa dos Tempos, 2022)

Essa é uma leitura indispensável para entender a violência política de gênero no Brasil e como ela atinge mulheres de modo multifacetado. O livro apresenta uma discussão inédita no país sobre violência política de gênero na trajetória de mulheres que disputam os espaços de poder e tomada de decisão e suas várias formas de manifestação. A obra é organizada pela ex-deputada federal Manuela d’Ávila, constantemente vítima de violência política, através de ameaças e fake news. O livro é dividido entre discussões teóricas e relatos de violência política.

Através de relatos da Anielle Franco, Áurea Carolina, Benedita da Silva, Dilma Rousseff, Duda Salabert, Erika Hilton, Isa Penna, Jandira Feghali, Jô Moraes, Manuela d’Ávila, Maria do Rosário, Marina Silva, Sônia Guajajara, Tábata Amaral e Talíria Petroni, é possível entender como a violência política se manifesta no contexto brasileiro, extrapolando a dimensão única de gênero, sendo manifestada também através do racismo contra mulheres negras e indígenas, como transfobia, LGBTFobia, etarismo e o assédio sexual, além de trazer a perpectiva do feminicídio político de Marielle Franco. Nota-se como essas violências acontecem nos partidos políticos, nas redes sociais e na mídia de massa.

O livro também apresenta uma discussão teórica sobre violência política de gênero, feita por Marlise Matos, pesquisadora da área e professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que apresenta os resultados de sua pesquisa que analisou o processo eleitoral municipal de 2020 no Brasil, identificando o modus operandi da violência política de gênero durante o período eleitoral.

Como resultado da pesquisa, a autora identificou e conceitualizar a violência política contra as mulheres e violência política de gênero, ambas produzem danos na inserção e na permanência de mulheres na política, a violência política racista, que induz a violência política etnorracial, homofóbica, que induz a violência política homofóbica através de ódio e agressão. Além de conceitualizar os tipos de violência política, como a violência simbólica, violência física, violência psicológica, violência economica, violência sexual e violência física, como tambpem a interseccional, que mobiliza vários marcadores sociais e múltiplos tipos de violência.

Os relatos e as argumentações teóricas servem como base para elevar a discussão sobre violência política de gênero para a crítica à sub-representação de mulheres nos espaços de poder e de tomada de decisão, como também apresenta uma bibliografia extensa sobre as discussões sobre violência política de gênero na América Latina.

Como ressaltado por algumas autoras citadas, há uma lacuna acadêmica na produção sobre violência política de gênero no Brasil. Isso principalmente por conta da sua invisibilidade e a comodidade de uma sociedade patriarcal e racista em deixar os espaços políticos cada vez mais perigosos e desconfortáveis para as mulheres, com a finalidade de manter a ordem da divisão sexual do trabalho e assim manter as mulheres nos espaços privados.

Além da bibliografia citada, há algumas pesquisas que vale a pena acompanhar, como as realizadas pelo Instituto Marielle Franco, o Instituto Odara, que publicam sobre violência política de gênero contra mulheres negras. O Instituto Update, que faz publicações de dados sobre, através do Observatório de Violência Política Contra a Mulher da Câmara Federal, que publica pesquisas com dados e definições, Notas Técnicas e outros documentos relevantes para discussões sobre o tema e a ONU Mulheres. É importante cada vez mais compartilhar as discussões sobre violência política como uma forma de prevenção a violência política de gênero e assim construir uma política sem violência.

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