Na última Quarta-feira de Cinzas, a memória e o legado de Marielle Franco estiveram no coração de uma consagração popular. Eleita, neste dia, como vencedora dos desfiles na Sapucaí, a Mangueira trazia em seu desfile a exaltação aos heróis que, segundo a escola de samba, não aparecem nos livros de história - um enredo que trouxe a vereadora do Rio de Janeiro para o coração da avenida. Poucos dias antes do assassinato de Marielle completar um ano - o que ocorrerá oficialmente na próxima quinta-feira - a mais marcante manifestação popular do Brasil cantava a memória da ativista e, ao mesmo tempo, gritava uma necessidade de respostas igualmente impossível de ignorar. A mensagem não poderia ser mais clara. Marielle segue, sim, presente. Em tudo que sua vida e sua morte nos dizem sobre um País dividido, violento e desigual. Como figura pública, como legado e, no momento, também como um incômodo ponto de interrogação. O assassinato, perpetrado no dia 14 de março de 2018, foi tão surpreendente quanto brutal. Mulher, negra, nascida e criada na favela da Maré, Marielle estava no começo do segundo ano de mandato como vereadora do PSOL no Rio, e vinha usando sua voz para denunciar a atuação violenta de policiais nas comunidades cariocas. Feminista e casada com outra mulher, era figura ascendente também na defesa dos direitos humanos e de grupos sociais marginalizados. Ainda assim, não tinha sido alvo de ameaças explícitas até então - o que explica o fato de nenhum segurança estar ao lado dela, nem na ocasião do crime, nem em nenhuma outra. Marielle havia, naquela noite, sido a mediadora do debate "Jovens negras movendo as estruturas", na Lapa, em um local chamado Casa das Pretas. Ela, acompanhada de uma assessora e do motorista Anderson Pedro Gomes, deixou o local por volta das 21h. Meia hora depois, na rua Joaquim Palhares, no bairro do Estácio, um veículo emparelhou e efetuou 13 disparos contra o carro que transportava a vereadora. Atingidos, Marielle e Anderson morreram no local. A assessora, felizmente, feriu-se apenas com estilhaços e foi liberada do hospital horas depois. Desde então, a investigação do crime vem sendo uma sucessão de incertezas. Admitido desde o início pelo secretário de Segurança do Rio de Janeiro, general Richard Nunes, o caráter político da ação é um complicador considerável para o avanço das diligências. Os elementos apontam para uma execução profissional, promovida, em maior ou menor grau, pelas milícias que controlam várias regiões da capital fluminense. O trabalho da Polícia Civil do Rio vem sendo questionado em diferentes aspectos, ao ponto de motivar um segundo inquérito, por parte da Polícia Federal, que apura eventuais tentativas de impedir a elucidação do caso - uma investigação sobre a investigação, em resumo. Dois dias antes de uma data que ninguém gostaria de ver concretizada, o Jornal da Lei traz um material especial, ouvindo especialistas em segurança e criminalidade, além de pessoas próximas a Marielle Franco e às bandeiras que ela erguia. Para discutir a importância de sua vida, e as muitas respostas sobre sua morte que ainda não surgiram - embora pessoas que acompanham o caso afirmem que estão mais próximas do que talvez possa parecer. Uma investigação sob pressão Envolvimento de milicianos é um dos poucos consensos em torno da execução FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL/JC Desde as primeiras horas que se seguiram ao assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes, a busca de respostas tornou-se uma questão de honra não apenas para a Delegacia de Homicídios do Rio, mas para todo o sistema brasileiro de segurança pública. Afinal de contas, a pressão é, compreensivelmente, imensa. Além de boa parte da sociedade civil brasileira, entidades como a Anistia Internacional e a Organização das Nações Unidas (ONU) já deixaram claro que estão de olho na investigação - que enfrenta, praticamente desde a cena do crime, inúmeras dificuldades para avançar. O quebra-cabeças é intrincado, e os responsáveis pelo caso têm, de modo geral, evitado que informações cheguem à opinião pública. Ainda assim, há pelo menos uma concordância entre os que acompanham a investigação: as digitais das milícias cariocas estão em todos os cantos - tanto no arranjo que resultou nas duas mortes quanto nas dificuldades para apresentar à sociedade as respostas tão aguardadas. De acordo com Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs) e membro do Fórum Nacional de Segurança Pública, o impacto político inerente ao caso complica ainda mais uma solução que já seria difícil, levando em conta o caráter premeditado do crime e a força das organizações criminosas envolvidas. Assim, segundo ele, não estaria em questão a correção da conduta dos investigadores, mas sim a extensão dos esforços tomados pelos criminosos para que o assassinato permaneça impune. "Como as milícias têm pessoas que atuam ou atuaram na polícia, que conhecem o procedimento, isso facilita para que eles possam criar uma cortina de fumaça em relação ao caso", afirma, mencionando falsos testemunhos e até confissões que não se mostraram verdadeiras no decurso da investigação. "A repercussão (causada pelo assassinato de Marielle) provavelmente não era esperada por esses grupos. Mas, de alguma maneira, a pessoa que fez isso sabia com o que estava mexendo." A elucidação do caso, de qualquer modo, é mais do que uma necessidade de afirmação da legalidade diante da ousadia de grupos criminosos. Há, também, um incômodo com o caráter simbólico de um crime contra uma figura destacada, diante de um problema crônico brasileiro: a baixa taxa de elucidação de crimes com morte. Segundo o último Atlas da Violência, divulgado no ano passado, o Brasil esclarece menos de 10% dos assassinatos, e não alcança 5% no que se refere à responsabilização dos criminosos. "Os últimos governos assistiram a tragédia da morte de 64 mil brasileiros anualmente. Reconhecer esse problema é um ponto. Mas a morte de Marielle é algo icônico", acentua Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro. Amiga pessoal de Marielle Franco, a socióloga acredita "claramente" que já existe uma conclusão sobre o caso - e teme que se esteja tentando encontrar uma forma de encerrá-lo sem que algo respingue em nomes importantes do estado. "Não há interesse em divulgar. A sensação que eu tenho é que já chegaram a esse resultado, sabem exatamente qual foi a dinâmica do crime, quem matou e mandou matar, mas temem que a divulgação de tudo isso vai causar muitos danos", argumenta Julita. "Um ano é um tempo muito longo, inaceitável para qualquer investigação. Denota falhas humanas e técnicas, e dificuldade de entendimento entre as vias de investigação das polícias Federal, Civil e Ministério Público", afirma Marcelo Freixo, deputado federal pelo PSOL (RJ) e um dos amigos mais próximos de Marielle. Uma das pessoas mais bem informadas sobre os desdobramentos do inquérito, ele toca no assunto com cautela, mas assegura: o caso não está longe de ser resolvido. "Não posso dar mais detalhes. Mas estamos bem próximos a uma parte importante do caso ser desvendado durante a semana de um ano da morte da Mari", garante Freixo. Segundo ele, que sofreu ameaças de morte e convive com a presença constante de seguranças, há uma "tradição de violência" contra defensores de direitos humanos no Brasil, o que torna a necessidade de solucionar o crime ainda maior. Mas reforça que, no caso específico da vereadora, não existiam ameaças que a colocassem como alvo. Na CPI das Milícias do Rio de Janeiro, conduzida por Freixo em 2008, a então assessora não chegou a trabalhar diretamente nas apurações. Linha do tempo da investigação Os milicianos e a cultura do espetáculo Gravações de dedos decepados por milicianos são comuns nos grupos de mensagens instantâneas que rodam nos celulares dos cariocas. Os grupos, formados de maneira auto-organizada, reúnem policiais civis, vigilantes, bombeiros, agentes penitenciários, seguranças privados e militares - da ativa, da reserva, da Aeronáutica ou da Marinha. Com a proposta de se tornarem oposição ao tráfico, viraram um braço paralelo da força estatal. Desta maneira, usam seus conhecimentos em trabalhos anteriores e suas autorizações de porte de arma para serem potências em favelas. Na CPI das Milícias de 2008, liderada por Marcelo Freixo, foi pedido o indiciamento de 225 pessoas - entre políticos e agentes. A Comissão Parlamentar de Inquérito foi motivada pela tortura de três jornalistas do jornal O Dia durante sete horas, com roletas-russas, choques elétricos e agressões. Em outro caso, a juíza Patrícia Acioli foi morta alvejada na porta de casa, com mais de 20 tiros em frente a câmeras de filmagem. "O modus operandi das milícias é espetaculoso", afirma o advogado carioca Alcysio Canette. Seus espetáculos mandam recados, inclusive recados visuais. Especula-se que milícias como a do Rio das Pedras existam desde a década de 1980, mas foi nos anos 2000 que elas tornaram-se visíveis e em expansão. Hoje, dominam em torno de 50% das favelas do Rio de Janeiro, que são mais de mil. Um legado que transforma ausência em presença Marielle, presente. Uma frase que, para as pessoas inspiradas por sua história, ganha um caráter não apenas de proximidade, mas de reafirmação. A cientista social, que cumpria uma nada tímida legislatura na antiga capital do País, foi uma das 32 mulheres negras eleitas vereadoras nas capitais brasileiras em 2016. Foi também a única mulher declarada preta, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a eleger-se no seu estado. Com 46.502 votos, foi a quinta vereadora mais votada do Rio. A votação consagradora foi consequência direta de sua atuação na defesa dos direitos humanos, com ênfase a moradores de favelas, mulheres e negros. Autodeclarada "cria da Maré", Marielle cresceu no subúrbio do Rio, enfrentando as mesmas dificuldades de milhões de cariocas, e tirou dessa vivência uma legitimidade particular em sua trajetória política. "Ela tinha uma história de vida que se identificava muito com o trabalho que desenvolvíamos", diz Marcelo Freixo, que creditou a Marielle a coordenação da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa (Alerj), no início de sua vida política. Se a ausência de Marielle é uma dor simbólica para grande parte dos militantes de movimentos sociais no Brasil, o efeito sobre as pessoas próximas não pode ser ignorado. A filha de Marielle, Luyara, hoje com 19 anos, tem tomado remédios para dormir. A socióloga Julita Lemgruber lembra com saudade da parceira de luta no embate para neutralizar os ataques aos moradores das favelas do Rio. Para Freixo, que a conheceu em 2002, perder Marielle não é perder uma militante. "Eu perdi uma pessoa que era como minha filha." De acordo com o relatório anual da Global Witness de 2017, o Brasil é o país com o maior número de assassinatos no mundo de defensores de direitos humanos e socioambientais. As mortes, com motivações políticas, são consideradas crimes políticos do ponto de vista sociológico. A afirmação é de Raffaella Pallamolla, doutora em Ciências Sociais e professora da Universidade La Salle, e corroborada por Patrícia Machado, advogada e doutoranda em História. Mas os assassinatos com motivações políticas ainda não são, por lei, considerados crimes políticos. A Constituição de 1988 estabelece a competência da Justiça Federal para processar e julgar os crimes políticos, mas não há, na legislação infraconstitucional, uma definição deste tipo de crime. A importância de Marielle e de sua morte, de qualquer modo, ainda está em debate. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, chegou a questionar a pertinência de mencionar o assassinato, durante discurso na ONU em fevereiro deste ano. "Por que citar tão somente Marielle?", questionou a ministra, alegando não achar que o ambiente justificasse uma "prestação de contas" à comunidade internacional. Em resposta, as redes sociais mantiveram-se ativas. "Sejamos sementes", diziam as postagens, bottons e camisetas com imagens da vereadora. O resultado on-line brotou na última eleição, de acordo com Julita Lemgruber. "Uma quantidade enorme de mulheres negras se inspirou no evento para candidatar-se", afirma. No Rio de Janeiro, o movimento resultou no maior número de candidaturas de mulheres autodeclaradas negras do País - registrando um aumento de 151% em comparação à eleição anterior. Seis delas foram eleitas. Talíria Petrone, amiga de Marielle, foi a nona deputada federal mais votada no estado, somando 107.317 votos válidos. Além dela, quatro mulheres, incluindo a ex-chefe de Gabinete de Marielle, foram eleitas para a Assembleia Legislativa. Renata Souza, Mônica Francisco e Dani Monteiro, todas pautadas por lutas identitárias e amigas de Marielle, foram eleitas pelo PSOL. Juntas, elas somaram 132.551 votos. Após os resultados das urnas, as deputadas estaduais manifestaram-se no Twitter. "Honramos a memória de Marielle Franco. Sou uma das três mulheres negras do PSOL eleita para a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia. Nunca mais estaremos sozinhas nos espaços de poder", afirma Renata. A esperança desses apoiadores e admiradores é que o tão citado sorriso da vereadora se perpetue, mesmo diante de seu trágico e inesperado desfecho. Em declaração à BBC Brasil, Mônica Benício, que compartilhou com Marielle uma longa história de amor, resumiu: "o mundo inteiro já está vendo que ela não pode ser calada. E não será". Quando a flor rompe o asfalto Livro foi publicado pela Editora Zouk em parceria com a Casa da Mãe Joanna, em 2017 REPRODUÇÃO/JC Marielle Franco Na contramão de um caminho pavimentado pela descrença ou pela mesmice, nesse período de golpe, outros elementos pulsam na cidade carioca com caracterizações distintas da que predominam na ordem nacional. A eleição histórica, com 46 mil votos, de uma vereadora favelada, negra e feminista, que assume posição política de esquerda, é uma contradição no ambiente do golpe. Isso, por sua vez, repercute significativos sinais da importância de ocupação dos espaços de poder do Estado, principalmente os institucionais, por meio das eleições e mesmo na disputa da autoritária meritocracia, cindindo ao máximo a concentração masculina e branca que toma tais ambientes. Os estereótipos associados ao que é ser uma mulher e as expectativas sobre como devemos nos comportar são facetas do discurso institucional e hegemônico ainda profundamente conservador e reacionário. Registra-se que tal movimento ganha força no momento atual; basta olhar, por exemplo, para o resultado das eleições nos EUA e no plebiscito do Reino Unido, entre outros exemplos possíveis. Em escala internacional, guerras, interdições, perseguições, separações voltam a aparecer e se marcam como impedimentos e controles cada vez maiores do outro, da outra, do corpo que não compõe o grupo social de poder, que tende a ser "colocado para fora", ou "impedidos", pelas classes dominantes de conviver com suas "diferenças" na cidade. Com a falácia da narrativa de "crise econômica", busca-se derrubar os direitos conquistados e, uma vez feito, serão as mulheres negras e pobres, moradoras das periferias, principalmente das favelas, que estarão ainda mais vulneráveis à violência e ao racismo institucional impregnado nos poros da formação social brasileira. Trata-se, portanto, de construir um bom senso e ações que superem as condições colocadas e alterem a correlação de forças, tornando-as mais favoráveis à vida, aos direitos e à dignidade humana. Conquistar tal ambiente é fundamental para avanços democráticos, principalmente no momento atual. O governo ilegítimo, autoritário e conservador amplia as forças das elites políticas e econômicas que predominaram no poder. Há, portanto, nesse momento, uma intensificação da repressão policial frente às manifestações populares, assim como o crescimento do discurso da guerra às drogas que impactam o coração das periferias. As contrarreformas trabalhistas e da Previdência são outros exemplos de investidas para destruir com os direitos. Tais ações impõem forte impacto às mulheres, principalmente as que vivem dos seus trabalhos e em condições nas quais o ofício de suas famílias são os meios de manutenção de suas sobrevivências. Quadro esse que marca a vida das mulheres negras e faveladas em escala nacional. Nessa conjuntura, com condições favoráveis para ambientes bonapartistas e crescimento em progressão máxima do autoritarismo e das várias dimensões do conservadorismo, questões fundamentais se colocam para a esquerda construir uma visão contemporânea no século XXI: a) avançar em ações contundentes imediatas, ampliando forças para bandeiras que emergem nesse momento, como as "diretas já" e "nem um direito a menos"; b) defender a vida, com momentos contra a violência letal e pela ampliação da dignidade humana; c) construir proposições de políticas públicas, para enfraquecer as estratégias do capital no Brasil; d) fortalecer a narrativa pela convivência plena na cidade, com as múltiplas diferenças, para conquistar no imaginário predominante o desafio fundamental de superar as desigualdades como eixo fundamental da luta; e) ampliar a centralidade dos corpos da periferia como atores centrais das ações sociais, entre os quais destacam-se as mulheres negras e mais pobres, com ênfase as faveladas, em todo o território nacional. Construir insumos que contribuam para potencializar que mulheres, negras, pobres assumam o papel de sujeitos para uma cidadania ativa com vistas a conquistar uma cidade de direitos é ação fundamental para a revolução no contemporâneo. Esse trecho é parte de um dos capítulos do livro "Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil", organizado por Winnie Bueno, Joanna Burigo, Rosana Pinheiro-Machado e Esther Solano e publicado pela Editora Zouk em parceria com a Casa da Mãe Joanna, em 2017.
Jornal do Comercio