Preocupação com o Hospital da Mulher continua, afirma deputada que presidiu CPI na Alerj
Era 19 de março de 2019, e a Folha dos Lagos chegava às ruas com a seguinte manchete: 'Uma dor que não sai do jornal'. Na edição, a história de mães que perderam seus bebês no Hospital da Mulher, em Cabo Frio. Os casos vinham tomando o noticiário, dia após dia, com denúncias de negligência médica e violência obstétrica. Foram pelo menos 20 mortes em janeiro, fevereiro e parte de março. Quase dois anos depois, dada a gravidade dos problemas revelados, a unidade ainda inspira vigília constante. É de preocupação o tom de voz da deputada estadual Renata Souza (PSOL), que presidiu CPI na Assembleia Legislativa (Alerj), em entrevista à Folha. Ela visitou o hospital na última sexta-feira (26). Ainda não é realidade, observa a deputada, o pleno funcionamento das comissões de ética médica, óbitos, revisão de prontuários e controle de infecções hospitalares. Além disso, as gestantes ainda não contam com elevador em funcionamento. E os números continuam chamando atenção: foram 45 mortes registradas em 2020, sendo oito em dezembro – sete destas categorizadas como 'morte domiciliar', ou seja, antes da chegada da mãe ao hospital.
"[A preocupação] continua latente. Ainda é um problema ter em dezembro oito óbitos. Isso chama a atenção", sublinha a deputada, que se reuniu com o prefeito José Bonifácio, a vice-prefeita Magdala Furtado, o secretário de Saúde Felipe Fernandes e o vereador Davi Souza.
Folha dos Lagos - Quais foram os principais apontamentos da CPI?
Renata Souza - A CPI sugere uma série de procedimentos. Um dos principais foi gerar a obrigatoriedade de quatro comissões dentro do hospital. Elas fariam diferença se estivessem funcionando. São as comissões de ética médica, revisão de óbitos, revisão de prontuários e controle de infecções hospitalares. Não conseguíamos, por exemplo, os prontuários. Conseguimos só no final da CPI. Nem as famílias estavam tendo acesso.
Folha - A CPI levantou o número consolidado de mortes de bebês durante aquele período?
Renata - Pedimos para o hospital mandar. Não tivemos boa vontade da direção. Contamos com o acompanhamento que a imprensa fazia. Nós tivemos um processo quase que de sonegação de informações. Quando chegamos a alguns documentos, tínhamos o número de 20 mortes em janeiro, fevereiro e parte de março. A partir disso, envolvemos os órgãos: o Ministério Público, o Conselho Regional de Medicina (Cremerj) e o Tribunal e Contas. Agora, com o documento que trouxemos para a nova gestão, temos a compreensão de que eles vão ter o cenário real do que aconteceu dentro do hospital. E que medidas preventivas serão tomadas para que isso não volte acontecer.
Folha - Qual foi sua percepção ao retornar à unidade? Algo mudou?
Renata - Passamos num momento em que o material de limpeza estava no meio do corredor. Além do uso inadequado, havia também poucas mulheres com máscara. Algumas salas que na vez anterior observamos estar mofadas, sendo lugares completamente insalubres, foram remodeladas: fizeram reforma no chão, nas paredes e teto. Isso foi uma mudança significativa. Mas a unidade ainda está sem o elevador, por exemplo. As mulheres precisam passar por rampas. Muitas falavam que subiam a pé, pois sequer havia cadeira de rodas.
Folha - Percebe-se que há orientações contidas no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com o Ministério Público que não foram seguidas, certo? A questão das comissões não foi resolvida?
Renata - As comissões não foram resolvidas. A nova gestão está entendendo isso. Eles tiveram um problema na transição, pelo que nos relataram. Não tiveram uma transição adequada que mostrasse os problemas reais do hospital. A CPI vai ajudá-los a compreender os problemas de maneira mais sistematizada, a poder construir outra forma de gestão. Por isso, queríamos vir o quanto antes. Entendemos que o trabalho legislativo precisa ter fio de consequência e conclusão. Além disso, peguei a atualização de óbitos de 2020. Achei que o número continua elevado. Foram 45 óbitos. E um número absurdo em dezembro. Tem um número expressivo de óbitos, inclusive, numa caracterização que achei complexa: 'óbito domiciliar'. Como assim? Essa mulher chegou com o feto morto dentro da sua barriga. Mas vem cá: por acaso ela foi anteriormente nesse hospital e não foi atendida? Porque isso aconteceu em vários casos. A mãe chegava ao hospital, não era atendida. Falavam a ela que não era hora de o bebê nascer e que ela deveria voltar para casa. Ela voltava para casa e continuava sentindo dor. Quando retornava ao hospital, falavam: 'você não veio, o bebê está morto'. Tinham outras situações, como o médico falar que não ia fazer a operação porque a mãe havia jantado. Esperavam até o dia seguinte, e o bebê morria na barriga da mãe. Esses foram alguns temas que as mulheres colocaram para gente.
Folha - As estatísticas de 2020 mostram que a preocupação continua latente...
Renata - Continua latente. Ainda é um problema termos em dezembro oito óbitos. Isso chama atenção. Esses dados relevam que o problema persistiu, ainda que estejamos passando por uma pandemia.
Folha - A sociedade cobrou muito por responsabilizações. Como ficou essa questão ao final da CPI?
Renata - A gente não indicou responsabilização individual. A responsabilização ficou a cargo da investigação aberta pelo Ministério Público e da delegacia, que está acompanhando o caso. A CPI trouxe o diagnóstico, apontou problemas administrativos e os encaminhou para os órgãos que têm competência de gerar outro tipo de investigação. Foi até aí que chegamos. Um papel fundamental da CPI foi apresentar 11 projetos de lei e duas propostas de emendas à constituição (PECs). São projetos de lei, no geral, para combater a violência obstétrica e para resguardar a saúde da mulher e garantir um atendimento mais adequado nesse momento tão importante da vida dessas mulheres. Entendemos que, depois do parto, essa mulher precisa ser acompanhada. No caso do Hospital da Mulher, também foi flagrante ali o problema na atenção básica. Essa mulher não teve muitas vezes acompanhamento adequado de pré-natal. Isso é uma obrigatoriedade da Prefeitura. Nos últimos meses, tivemos a girada da pauta da Alerj para a questão da pandemia. Na semana que vem, todos os projetos vão entrar em pauta. Só as PECS que não vão entrar, pois merecem outro tipo de ação legislativa para caminhar. Será o mutirão do mês de março, o mês das mulheres.
Folha - Como foi a conversa com o prefeito e com o secretário de Saúde? Como acredita que as coisas vão caminhar agora?
Renata - A conversa foi muito positiva. Eles se mostraram muito abertos a receber as demandas que nós apresentamos diante de um fato tão desumano que aconteceu dentro de uma maternidade, dentro de um hospital que deveria cuidar das mulheres e também dos bebês. Mostraram-se muito abertos, mostrando soluções para isso não se repetir. Caminhando também para algumas questões mais específicas. Por exemplo, conseguimos junto ao deputado Marcelo Freixo uma emenda parlamentar, junto à secretaria estadual de Saúde, de promoção e formação de ações dentro de hospitais visando ao combate à violência obstétrica. Muitas vezes, nem o profissional reconhece a violência obstétrica. Vimos a tentativa de retirar esse conceito do âmbito do Ministério da Saúde. Isso seria um prejuízo real. Porque aquilo que não se nomeia não existe. E violência obstétrica está no cotidiano de mulheres pretas e pobres, que são da favela e da periferia. É importante que a gente denomine e mostre que isso de fato ocorre. Também temos um projeto de lei para criação de casas de parto, justamente para entendermos a necessidade de partos humanizados. Uma coisa que me assustou na estatística do ano passado é que foram 1022 cesárias no Hospital da Mulher. Me assustei com esse número tão elevado. Essas casas de parto humanizados vão priorizar o parto normal.
Folha - Como será sua fiscalização daqui para frente?
Renata - Combinei com o atual diretor do hospital para que me mantenha atualizada sobre esses dados. Queremos fazer esse acompanhamento. A política pública pode e dever funcionar dessa forma. Uma CPI como essa pode gerar para Cabo Frio, que teve esse trauma tão grande, um lugar de excelência para essas mulheres terem esses seus filhos. Apresentamos formas para isso acontecer.
Folha - Falta recurso ou é uma questão de vontade e competência?
Renata - Quando fizemos a CPI, vimos que o recurso para a Saúde é sempre um grande problema. Mas é importante que o recurso o mínimo para a Saúde seja respeitado pelo município. A última gestão da secretaria municipal de Saúde deixou muito a desejar. A gestão administrativa do hospital também era um problema. Tinha uma gestão familiar. Tínhamos um diretor e uma diretora que eram casados. Só o tempo nos dirá se o que apresentamos na CPI será colocado em prática para que o hospital volte a ser referência para Cabo Frio e região.
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