Marielle era muitas. A mãe de Luyara Franco antes dos 20, a apaixonada por Monica Benício ao som de Mart'nália. Também era a defensora de direitos humanos, quinta vereadora mais votada na cidade do Rio de Janeiro. Era ainda uma mulher, negra e favelada - cria da Maré, como dizia - que "sintetizava no seu corpo o encontro de lutas que desafiam os poderes desiguais e de opressão", diz a deputada federal Áurea Carolina (Psol). A ensurdecedora voz silenciada no dia 14 de março de 2018.
"Aqueles que achavam que matando Marielle iam provocar silêncio erraram, porque, na verdade, provocaram grito", contraria Talíria Petrone, também deputada federal e amiga de Mari, como ela chama durante a entrevista. "Todas somos sementes de Marielle. Ela segue viva em cada uma de nós", completa Áurea Carolina. Restando poucos dias para a volta do 14 de março, agora um ano depois, mulheres negras e eleitas deputadas germinam em solo duro e tomado de dor. Reafirmam: Marielle não será interrompida, como ela mesma dizia na Casa parlamentar para a qual foi eleita.
A autoria dos treze tiros que assassinaram Marielle Franco e Anderson Gomes, motorista do carro no qual a vereadora estava, prossegue desconhecida. "Foi a execução de uma parlamentar legitimamente eleita, que trazia em si uma diversidade de signos: LGBTs, favelados e faveladas, pretos, mães", afirma Mônica Francisco, eleita deputada estadual do Rio de Janeiro e ex-assessora parlamentar de Marielle. "(Foi) Um feminicídio político de uma mulher negra em ascensão política", resume a ex-chefe de gabinete da vereadora, Renata Souza.
A luta de Marielle, contudo, era luta de muitas. "Eu sou porque nós somos", a vereadora dizia. "Nossos passos vêm de longe e não só da nossa própria trajetória como nos aprendizados que nós herdamos de outras lutadoras que abriram caminhos para a gente", narra Áurea Carolina. Contudo, "um senso de urgência que despertou depois da execução da Mari", explica Talíria Petrone. "Não tinha pressa. A morte da Mari despertou um senso de urgência do quanto o nosso corpo tem que estar lá", enfatiza ela.
"A Marielle tira do lugar de suposto conforto mulheres que não estavam necessariamente na via da política institucional. Ocupar o espaço de poder é sim uma ferramenta essencial para a nossa sobrevivência na sociedade", explica Renata Souza. O maior número de candidatas negras nas últimas eleições, e o maior número delas ocupando cadeiras em Assembleias Legislativas e também na Câmara dos deputados refletem uma construção que é também histórica. "A candidatura dessas mulheres sempre esteve aí, mas nunca elas foram protagonistas", lembra Mônica Francisco.
A força política inspirada por Marielle foi força para tantas que também carregam no corpo as lutas de ser quem é. "Tanto a origem e trajetória pessoal dela, como a militância e a execução covarde que ela sofreria guardam muitas semelhanças com as nossas vidas. Olhar a trajetória da Mari é reconhecer uma origem e uma fala parecida com as minhas", afirma a deputada estadual pelo Rio de Janeiro, Dani Monteiro. Junto a Mônica Francisco e Renata Souza, Monteiro também fazia parte da "mandata" de Marielle, assim mesmo no feminino.
"A mandata ainda está viva. Foi um ano de dor, mas também de acúmulo de forças que chegou no processo eleitoral", aponta a advogada especializada em direitos humanos, Soraia da Rosa. Essas mulheres negras eleitas trouxeram "modificações muito radicais na política". "Isso é legado de Marielle", acredita.
Marielle Franco desafiou quem ousava limitar o seu espaço. "Tem lugar da mulher negra que ninguém se maldiz, se for para trabalho precarizado. Agora, quando você ousa fazer deslocamentos, contrariar o racismo estrutural assumindo outras posições, você vai ter resistência", relata a professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Zelma Madeira. A dor de uma existência interrompida é impulsão de mulheres que continuam.
"A gente está vivendo um dos maiores levantes de mulheres negras dos últimos tempos da história brasileira", considera Talíria Petrone. "Por isso também tanto ódio da imagem da Marielle. Não aceitam que Marielle traga tanta força, tanta coragem, tanto poder de radicalização da democracia", afirma Áurea Carolina. Mas não há mais como interromper. "Enterrar Marielle foi o germinar daquelas que estavam no entorno dela. Nós somos as sementes que germinaram", diz Dani Monteiro. Marielle era muitas.
O Povo