Amiga e companheira de partido de Marielle, deputada estadual Renata Souza teme que prisão de executores não leve aos mandantes do crime.
A primeira notícia que a deputada estadual Renata Souza (PSOL)recebeu na manhã da última terça-feira, dia 12, foi a de que, finalmente, dois suspeitos pelo assassinato da vereadora Marielle Franco, de quem era amiga e foi chefe de gabinete, haviam sido presos. As prisões ocorreram dois dias antes de o crime completar um ano.
Marcada por entrevistas à imprensa, atividades parlamentares e permeada por novidades sobre o caso, aquela manhã ainda se revelaria agitada para Renata. A notícia das prisões, para a deputada, trouxe um misto de sentimentos de alívio e preocupação.
“Traz pra gente um acalento. A esperança já estava se esvaindo. Afinal de contas, um ano e você não tinha nenhuma resposta concreta sobre o que aconteceu”, disse a deputada em entrevista ao HuffPost Brasil, em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). “Por outro lado demorou tanto e será que vamos chegar ao mandante desse crime? Ou será que isso não faz parte de uma ‘cala-boca’?”, questiona.
O encontro com a reportagem do HuffPost Brasil havia começado pouco mais de uma hora antes, a algumas quadras dali, em um um escritório emprestado do colega de partido o deputado federal Marcelo Freixo, na região central da do Rio de Janeiro. A assessoria da deputada havia transferido a entrevista para lá porque, há dois dias, o forro do teto do gabinete de Renata, no prédio anexo à Alerj, havia desabado.
Eu tenho usado feminicídio político porque a Marielle é morta pela condição dela na política.
REUTERS
Lambe-lambes nas paredes de ruas do Rio de Janeiro lembram a imagem de Marielle Franco, vereadora assassinada.
A deputada e sua equipe acompanhavam pela TV a coletiva de imprensa da Delegacia de Homicídios (DH) e do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco/MPRJ), responsáveis pela investigação e pelas prisões do policial militar reforma e do ex-PM, acusados de matar Marielle.
“Eu tenho usado feminicídio político porque a Marielle é morta pela condição dela na política. Todo o repertório que representa o corpo dela e as lutas que ela trava dentro daquela Casa nos levam a um significado muito específico na nossa sociedade”, afirma Souza.
Pouco antes do fim da coletiva, a deputada chamou a reportagem para uma outra sala, onde a entrevista seria iniciada. Antes de ligar o gravador, ela foi solicitada. “Precisam de você na Alerj”, disse uma das assessoras. E a reportagem foi convidada a acompanhá-la. Fomos a pé até o prédio histórico da assembleia, perto dali.
Ela precisou correr pois seus colegas, o deputado Carlos Minc (PSB) e a deputada Mônica Francisco (PSOL), a esperavam para presidir a sessão que definiria a presidência e vice-presidência da comissão de combate à discriminação racial, que foi assumida por ambos, respectivamente.
Em sua fala, Renata defendeu a importância daquele espaço para o combate ao racismo e afirmou que poderia haver um trabalho em conjunto com Comissão de Direitos Humanos da Alerj, que agora está sob sua gestão.
Ao lado de Marielle, ela fez parte da equipe de Freixo, então deputado estadual, que presidiu a comissão entre 2008 e 2018. Agora ela chega à presidência como a primeira mulher negra a assumir o cargo, depois de ser eleita deputada com quase 64 mil votos.
Encerrados os trâmites da votação, a deputada precisou ir para o plenário da Alerj. Renata queria confirmar sua presença na Casa para poder ter alguns minutos naquela tarde, durante a sessão ordinária, para falar sobre Marielle.
As duas eram amigas havia quase 20 anos. Se conheceram no início dos anos 2000, no curso pré-vestibular comunitário da favela da Maré, zona norte do Rio. Depois disso trabalharam juntas na equipe de Freixo na Alerj e, posteriormente, Renata chefiou o gabinete do mandato de Marielle na Câmara Municipal do Rio.
Depois de confirmar sua presença para a sessão que começaria em duas horas, a reportagem seguiu para o seu gabinete - já com o forro do teto consertado - para fazer a entrevista que você pode ler abaixo:
HuffPost Brasil: Hoje é um dia pesado né? Como está sendo, depois de quase um ano, receber alguma resposta sobre o assassinato da Marielle?
Renata Souza: Isso traz pra gente algum acalento. A esperança já estava se esvaindo, afinal de contas, um ano e você não tinha uma resposta concreta sobre o que aconteceu. Isso realmente deixa a gente desacreditando de uma investigação como essa. Ainda mais em determinado momento em que você tem a investigação da investigação. Você imagina para gente, que precisa de uma resposta. Até porque, hoje a gente está em um ambiente político muito hostil, onde a barbárie está se tornando método e o ódio está se convertendo como algo característico da política. É muito emblemático esse momento. Para nós, que convivemos com a Marielle esse tempo todo, é muito importante ter uma resposta. Eu cresci com a Marielle na Maré. Conheço a Marielle há 18 anos. Eu era uma moleca, ela era uma moleca. A gente foi se consolidando juntas, na militância em defesa da vida, na construção de uma política que pudesse falar mais a partir da favela. Ver tudo o que a Marielle construiu para dentro do partido, para a sociedade, e ver essa tentativa tão violenta e bárbara de silenciamento desse trabalho sem ter uma resposta a contento em um ano é muito difícil. Hoje acordei com um misto de sentimentos. Por um lado é bom pensar que agora pode ser que a gente consiga chegar no mandante desse crime. Por outro, demorou tanto, chegou e agora será que vai mesmo? Ou será que isso não faz parte de um ‘cala-boca’? Algo do tipo ‘achamos quem matou, não vamos conseguir achar quem mandou matar, se contentem com isso’. Isso me causa uma certa angústia. Essa foi a primeira notícia que recebi no dia e para mim foi muito simbólico esse misto de sentimentos.
Você tem usado esse termo ‘feminicídio político’ para definir o assassinato da Marielle. Você acredita que isso não teria acontecido se ela não fosse uma mulher?
Acho que não. Eu tenho usado feminicídio político porque a Marielle é morta pela condição dela na política. Todo o repertório que representa o corpo dela e as lutas que ela trava dentro daquela Casa nos levam a um significado muito específico na nossa sociedade. Quem é que morre? São os pretos. Quem é que sofre feminicídio? Está crescendo o número de mulheres negras assassinadas. Quem é o país que mais mata a população LGBT? É o Brasil. A Marielle encarna no corpo e na luta dela uma pessoa que está no rol dos matáveis. Por isso que ela não precisava sequer ter uma ameaça. Foram lá, executaram sumariamente e ponto. Não avisaram. A gente olha para os homens da política e vê que eles recebem ameaça. Marielle não recebeu ameaça porque não precisava. É uma mulher, uma negra, uma favelada. Morre todo dia gente assim. Mas é óbvio que quem mandou matar não sabia que isso ia ganhar essa proporção. Ela e toda a sua estrutura de combate às opressões representam aquela que está fora do lugar. Ela supostamente não devia estar dentro de uma casa legislativa, falando no mesmo tom que os homens que historicamente ocuparam aquele espaço. Ela estava fora de lugar. Ela incomodou.
A Marielle encarna no corpo e na luta dela uma pessoa que está no rol dos matáveis.
Parede de gabinete da deputada Renata Souza lembra suas lutas identitárias e tem uma das placas de rua com o nome da vereadora Marielle Franco.
Na última sexta-feira, 8, no Dia Internacional da Mulher, a Marielle foi muito lembrada nas manifestações que aconteceram pelo país. Nestes atos sempre se usam as frases ‘Mariele, presente’, ‘Marielle vive’. Como você vê essas homenagens?
Eu prefiro o ‘Marielle, presente’ do que o ‘Marielle vive’. O ‘Marielle, presente’ para mim é real. Eu tenho muita dificuldade em falar da Marielle no passado. Então ela está presente com toda a amplitude que essa palavra traz. Presente de estar nos nossos pensamentos, nas nossas ações. O que dá sentido à nossa manutenção na luta é a Marielle. Ela é presente dessa forma. Mas ele é como um presente que a humanidade ganhou. Ela é nossa principal inspiração e referência na política. Ela presenteou a humanidade com um recado, com uma luta, para que a humanidade não se desumanize.
O trabalho está intenso desde que você assumiu o mandato? Isso dá algum certo conforto, de alguma forma?
Sim, é correria. E sabe por que? Quando você chega num lugar como esse, você tem pressa de fazer as coisas. Eu chego aqui com essa ânsia de querer assumir a presidência da Comissão de Direitos Humanos. Não só por ser simbólico, mas por ser o local onde eu me formei na política institucional. Ainda que a gente saiba que o Estado é o principal violador de direitos e a Comissão de Direitos Humanos é do Estado, é ali que a gente aprende quais são os caminhos por dentro do Estado para superar essa lógica de violação. Foi uma escola para mim e era algo que eu precisava estar a frente, dando continuidade ao que foi feito nesses últimos dez anos. Foi construída uma metodologia de trabalho muito focada no atendimento ao público. Sempre comentamos aqui na Alerj que a Comissão de Direitos Humanos teve um caráter quase de secretaria. A gente é essa referência. Então eu fiquei muito assustada com a possibilidade dessa comissão não estar no campo progressista. Em determinado momento, a bancada do PSL fez uma pressão e trouxe a relação da presidência da comissão como moeda de troca aqui dentro da Alerj. A gente precisou agir muito rápido com o campo progressista, entendendo o nosso papel fundamental para que esse trabalho se perpetue e se amplie e que a gente possa continuar sendo essa referência no Rio de Janeiro. Ainda mais nesse momento em que a política pública beira a barbárie. A gente vê isso com o presidente da República e com o governador. É preciso ter um lugar forte para acolher essas pessoas, que necessariamente vão ser violadas por esse Estado. A gente não tem nem dúvida do que vai acontecer. Já aconteceu o Fallet/Fogueteiro. Foram 15 mortos e a há denúncias enormes de que aquelas pessoas já estavam rendidas. Você já tem aplicação da pena de morte no chão da favela.
Sim, é correria. E sabe por que? Quando você chega num lugar como esse, você tem pressa de fazer as coisas.
Em 8 de março de 2019, marchas no Rio de Janeiro lembraram a vereadora.
Como foi essa transição, de fazer parte da construção desse trabalho da comissão como assessora do deputado Marcelo Freixo, e agora estar na presidência? E qual é a importância de ser a primeira mulher negra presidindo a Comissão de Direitos Humanos da Alerj?
É uma responsabilidade enorme. Porque uma coisa que a gente sempre questionou e trouxe como algo fundamental nesses debates é o nosso olhar privilegiado. E por que ele é privilegiado? Não porque ele salta a partir de um lugar de privilégios. É o contrário. É o olhar privilegiado porque a gente vive o estado de exceção colocado dentro de uma favela. Ali a gente entende, no nosso cotidiano, como funcionam as operações policiais, diferente do que muitas vezes é publicado no jornal. Ali a gente sente, a gente vê, a gente sabe como é que é. Quando eu digo olhar privilegiado é o olhar de quem já passou por essas situações e vai ter uma outra sensibilidade quando receber alguém que está passando por isso. É uma responsabilidade enorme sendo mulher, negra, da favela. Trazemos para lugar de destaque o papel da mulher, na presidência de uma comissão tão importante. Isso é importante para a luta das mulheres também, pelo reconhecimento do nosso trabalho. Eu não fui colocada ali só politicamente. É também um reconhecimento do meu trabalho. Nos últimos dez anos, todos os relatórios da Comissão de Direitos Humanos foram coordenados por mim, foram editados por mim. Claro, em parceria com a Marielle, com todo mundo escrevendo, mas eu estava nessa concepção, desde um atendimento até a concepção teórica, a prestação de de contas. Eu vivi todo o processo da comissão.
Mas tudo isso estava nos seus planos? Você já fazia parte da comissão, do mandato da Marielle, mas é a morte dela que faz você decidir sair candidata? Como foi esse processo de sair dos bastidores?
Nos últimos 12 anos eu estou nos bastidores da política, na assessoria do Marcelo Freixo, da Marielle. Com a eleição da Marielle, eu já tinha muito definido o meu local, que era estar do lado dela, construindo essa mulher que hoje é referência planetária. Eu não queria sair dali. Era motivo de muito orgulho estar ali construindo com a Mari. Ao mesmo tempo, sempre houve esse reconhecimento, tanto dela quanto meu, de que eu poderia vir candidata em algum momento, mas comigo isso era mais subterrâneo. Eu sempre dizia que meu lugar era nos bastidores da política. Com a vinda da Marielle para Câmara a gente passa a discutir mais esse local que a mulher deveria ocupar. Com a execução sumária dela, o feminicídio político da Marielle, eu me vejo chamada por ela. Ela sempre disse ‘eu não quero estar sozinha, eu não posso estar sozinha nesse lugar.’ A gente construiu, em novembro de 2017, o evento ‘Mulheres na Política’. Foi um encontro maravilhoso, que reuniu cerca de 600 pessoas na Associação Brasileira de Imprensa. A grande cicerone era a Marielle. A gente fez uma coisa muito legal de uma subir e puxar a outra. A Marielle subiu no palco e puxou a Talíria, que puxou mais alguém. Então até nisso a gente pensou, no quanto o corpo também precisava falar naquele momento. Eu entendi um chamado da Marielle. Todos os coletivos que faço parte, dentro e fora do partido, também viam como natural a minha vinda como candidata. Só não era natural para mim. Ainda mais diante de um assassinato. Muitas vezes, racionalmente, você se recolhe num momento desse. E o que a gente fez foi o contrário, foi se apresentar para continuar na luta, para não deixar com que outras pessoas sintam medo. Fizemos contrário daquilo que a sociedade esperava que a gente fizesse, que era sumir. Eu recebi convites para sair no Brasil e em determinado momento pensei nisso. Foi muito sofrimento, muito abalo, desde o primeiro dia eu não descansei. Acompanhei a família da Mari nas entrevistas, para dar esse suporte de comunicação. Só tomo a decisão real de vir candidata um mês e meio depois do assassinato da Marielle e não foi uma decisão fácil. Depois de conversar muito, inclusive com a própria família da Marielle, decidi vir candidata porque na política não pode ter espaço vazio. Ainda mais deixado, interrompido, como foi o lugar da Marielle.
Mas não é assim. E a gente provou isso na urna, todas as três muito bem votadas.
Renata Souza, ao lado de ativistas, em protesto no Rio de Janeiro.
Você falou que não pode deixar que as pessoas sintam medo. Mas você sente algum tipo de medo? Tem sofrido algum tipo de ameaça?
O medo é uma constante na nossa vida. Viver na favela é viver com medo permanentemente. Não existe lugar de segurança e conforto para gente. A cada operação policial é uma pessoa que morre dentro de casa. A gente teve a dona Ana recentemente no Morro do Alemão, que foi assassinada dentro de casa no meio do Carnaval. Uma das coisas que eu sempre falo, que é uma fala que sinto que vem do meu útero, é que, enquanto uma criança morrer com tiro de fuzil, eu não descansarei e espero que ninguém descanse. Essa frase remonta esse lugar de insegurança permanente. Esse medo é real. Mas ele não pode nos engessar. O medo é combustível para continuar na luta. É um medo que diz ‘você tem que ir pra cima para que ninguém sinta medo’. Não é humano que as pessoas sintam esse medo. É uma violação absurda. Eu lembro muito de uma frase da Marielle, que nos momentos mais bolados, mais decisivos batia no meu ombro e dizia ‘vamo pra cima, negona’. Então a todo momento eu sinto esse chamado, esse tapa nas costas. Ela era muito carinhosa e muito bruta ao mesmo tempo. Eu escuto esse ‘vamo pra cima, negona’.
Ao mesmo tempo agora você não está sozinha aqui na Alerj...
Não! Exatamente. É isso. Tem Dani [Monteiro], tem Mônica [Francisco], que complementam esse trabalho e isso é essencial. A gente desafiou o pragmatismo político, que é machista, racista e classista. Esse pragmatismo diz para as mulheres com as características que temos que só pode vir uma por vez. Como foi com a Marielle, com a Talíria. Eram só elas para vereadora no Rio e em Niterói. O discurso é que só pode vir uma por vez porque essas mulheres vão disputar voto. Quando eles dizem isso, eles querem nos homogeneizar, falar que mulher preta é tudo igual. O mesmo não acontece quando tem um homem branco, do mesmo partido, com referências parecidas. Tem um exemplo muito bom para a gente dar que é o [Marcelo] Freixo e o Flávio Serafini. Os dois vieram de Niterói, os dois são professores de história, os dois tem uma história parecida, e ninguém disse que eles vão disputar voto. Mas, para nós, mulheres negras, durante todo o processo de campanha vinha o pragmatismo político dizer que a gente estaria disputando voto entre nós. Somos mulheres pretas, então somos todas iguais, né? Quantas vezes eu fui confundida com a Marielle na Câmara. ‘Porque preta é tudo igual.’ Mas não é assim. E a gente provou isso na urna, todas as três muito bem votadas.