por Renata Souza, Marina Iris e Seimour Souza
Maio é um mês de luta e de disputa de narrativas para a história de negras e negros na construção do Brasil. Ao longo da história, grandes intelectuais como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Abdias do Nascimento, Milton Santos, Muniz Sodré, Guerreiro Ramos, Clóvis Moura, dentre tantos outros, vêm, a partir do seus escritos, denunciando as terríveis condições a que a população negra se encontra submetida, mas também reescrevendo a história e revelando o que historiografia oficial não conta.
A consequência dessa história não contada, velada e oculta é ser alicerce para difusão do mito da democracia racial e, ainda hoje, da negação do racismo. Essa história anônima, desconhecida ou ignorada propositalmente, às vezes se vê escancarada nas primeiras páginas de jornais, como infelizmente ocorreu na última semana: mais de uma dezena de corpos de jovens negros assassinados em operações policiais no Rio de Janeiro tomaram as fotos de capa e as notícias. Uma história que sai dos bastidores apenas quando corpos negros são tombados: o genocídio do nosso povo faz manchete.
Maio é o mês em que comemoramos o dia das mães, que tem como significado máximo o afeto entre mães e filhos, o parir e a defesa da vida. Mas foi neste maio que diversas mães pretas choraram o afeto interrompido em consequência das vidas subtraídas por operações policiais. Ceifaram vidas, sonhos, e a possibilidade de amar ou ser amada em completude e inteireza. Episódios como esses evidenciam que a abolição da escravatura, ocorrida em 13 de maio de 1888, precisa ser encarada pelo conjunto da sociedade como um não projeto de Estado e, portanto, um processo inconcluso no que diz respeito à conquista da liberdade e dignidade da população preta brasileira.
A pandemia do novo coronavírus, altamente letal nas favelas e periferias do Brasil, vem escancarando para o mundo as condições de desigualdade, miserabilidade e vulnerabilidade a que pessoas negras estão submetidas. O vírus não escolhe quem infectar, mas a omissão do Estado frente ao progressivo número de contaminações em favelas e periferias, acrescido de operações policiais devastadoras, tem escolhido quem pode morrer. Aqui, omissão e ação seletiva se combinam, criando uma fusão sinistra e trágica entre abandono e extermínio.
Para um Estado que foi fundado sob a égide da negação do racismo e de suas consequências sobre a vida da população negra, nada mais “natural” que seu modus operandi esteja baseado na negação do direito à vida, na tortura, no caos, no vilipêndio, no encarceramento e no assassinato dos corpos negros. Seria paradoxal se não fosse evidente.
Neste contexto e lidando com toda dor, angústia e revolta que ele nos faz sentir, comemoramos pela primeira vez o Dia da África (25 de maio) de forma oficial no estado do Rio de Janeiro. Depois de forte embate na Alerj, onde um parlamentar evidentemente racista tentou emendar o Dia da África para que fosse incorporado também o Dia dos EUA, conclamamos a todas e todos para que possamos olhar, para esse dia, a partir de uma perspectiva ancestral. Afinal, nossos passos vêm de longe.
Que nos atentemos às experiências africanas seculares, que nunca colocaram o lucro acima da vida e nem a humanidade em risco. É necessário que nós, enquanto defensores dos direitos humanos, tenhamos autonomia e percepção de que o nosso destino precisa caminhar no sentido contrário ao do atual modelo de sociedade, baseado na necropolítica e na negação da possibilidade de afetos, sonhos e vida para as pessoas negras. Que tenhamos o Ubuntu, “eu sou porque nós somos” e o Djumbai, “tecido e tessitura de processos de vida, que constroem sujeitos coletivos relacionalmente”, como filosofia de nossa caminhada, pois a vida em coletividade é a essência maior da nossa mãe África. Essência que vemos manifesta nos processos de aquilombamento, de resistência territorial e de luta cotidiana do nosso povo preto.
Obviamente, não podemos abandonar o Estado brasileiro nas mãos dos barões da morte, que secularmente o administram com um objetivo de impedir que pretos e pretas sejam devidamente valorizados e que tenham espaço nas esferas de poder e decisão. Reintegrar esses espaços ao povo preto, ocupando-os, torna-se imperativo em momentos de aceleração do genocídio do nosso povo. Evidentemente, não defendemos a ocupação dos espaços de poder por pessoas negras a partir de uma ótica liberal da busca por colorir o Estado, nem mesmo a partir da inclusão de uma parcela da sociedade, enquanto exclui outras. Defendemos essa ocupação, pois temos a consciência de que nossa percepção da realidade é outra, que nossa noção do papel do Estado é outra, e de que, diferente do pensamento liberal, queremos um Estado cada vez mais forte, uma educação cada vez mais ampla, um sistema de saúde cada vez mais empenhado no cuidado com todas as pessoas. Queremos políticas universais, públicas e gratuitas, que protejam o povo no lugar de desampará-lo.
Queremos um Estado que se comprometa com a vida e não com a morte, e esse Estado só existirá se for fruto da luta dos negros e negras em nossa história. Uma luta pela liberdade que começou muito antes da formalidade jurídica expressa pela abolição, que se estende até hoje e que só terminará quando ocuparmos todos os espaços que nos foram historicamente negados.
*Renata Souza é jornalista e deputada estadual
*Marina Iris é cantora e jornalista
*Seimour Souza é cientista político e coordenador da UNEAFRO-RJ, NICA-Jacarezinho