Enquanto nos Estados Unidos os protestos antirracistas relacionados ao assassinato de George Floyd provocaram reações em governos e no Congresso, no Brasil as reivindicações do movimento negro continuam em segundo plano para a classe política. Se lá os parlamentares aprovaram até um projeto de reforma das forças policiais americanas, aqui apenas sete dos 580 projetos de lei apresentados na Câmara dos Deputados desde a morte de Floyd, em 25 de maio, estão relacionados a pautas raciais.
Três desses sete projetos foram uma resposta imediata a uma medida do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub contra cotas na pós-graduação: deputados de Rede, PT, PSOL, PSB e PDT apresentaram projetos para obrigar universidades federais a adotar ações afirmativas.
Em dois dos estados de maior relevância política do país, a situação não é diferente. Na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), questões raciais foram abordadas em três dos 77 projetos de lei apresentados no período. Na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), foram cinco dos 174 projetos. Quase todas essas proposições são de autoria de parlamentares do PSOL.
Em São Paulo, projeto de Carlos Giannazi (PSOL-SP), por exemplo renomeia quatro rodovias paulistas que foram batizadas para celebrar figuras como os bandeirantes, responsáveis pelo genocídio indígena e quilombola no estado, e o presidente da ditadura militar Castello Branco.
No Rio, Dani Monteiro, Mônica Francisco e Renata Souza, também do PSOL, também pedem que prédios, rodovias e espaços públicos que pertencem ao estado e que homenageiam tais personagens sejam rebatizados em até um ano. Já sobre monumentos, estátuas e bustos, a proposta diz que “devem ser retirados de vias públicas e armazenados em museus para fins de preservação do patrimônio histórico do Estado”.
— São iniciativas de suma importância porque trazem responsabilização e reparação histórica. Hoje a gente tem a oportunidade de rever a naturalização de todo o processo de escravidão — diz a deputada estadual Renata Souza (PSOL-RJ).
VIDAS NEGRAS IMPORTAM: MUNDO FURA A QUARENTENA PARA PROTESTAR CONTRA O RACISMO1 de 13
Manifestantes se reúnem para uma manifestação contra o racismo, em frente ao Borough Hall, no Brooklyn, Nova York, nos EUA Foto: ANGELA WEISS / AFP Uma multidão de manifestantes marchou em frente à Embaixada dos EUA em Londres, neste sábado, para mostrar solidariedade ao movimento Vidas negras importam Foto: JUSTIN TALLIS / AFPUm projeto de Max Lemos (PSD-RJ), por sua vez, proíbe policiais de usarem o estrangulamento para imobilizar pessoas em abordagens. Ele cita o caso de Floyd, nos Estados Unidos, para se referir à truculência policial.
Para a socióloga Winnie Bueno, articuladora da Coalizão Negra por Direitos, quase inexiste reação da classe política, e as respostas aos problemas da população negra “são todas do próprio movimento social”. A organização de Winnie congrega 150 entidades do movimento negro e articula ações conjuntas de combate ao racismo junto ao poder público.
— Tem até algum tipo de sinalização (por parte da classe política), mas é muito tímida. Quase nada. Por parte do governo federal então nem pensar. Nunca, jamais existiu — afirma ela.
Encontros e iniciativasWinnie foi uma das lideranças convidadas pelo ex-presidente Lula (PT) para uma reunião online dias atrás. Juntaram-se a eles o jurista Silvio Almeida, ativistas como Leandro Santos (conhecido como Mussum Alive), Rennan Leta, Bia Ferreira, Alê Santos, o advogado Joel Luiz e a educadora Anielle Franco, irmã da vereadora assassinada Marielle.
Durante quatro horas, Lula ouviu sobre projetos para combater o racismo e também críticas aos governos petistas, em especial sobre a política de combate às drogas e a criação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), apontadas por ativistas do movimento como prejudiciais à população negra. O encontro foi entendido como um aceno ao movimento negro em razão dos protestos antirracistas.
Leandro Santos diz que gostaria de ver o ex-presidente levando as propostas para dentro do PT e criticou ter sido o único aceno dos partidos ao movimento. Para ele, a classe política faz pouco pela população negra em razão da falta de representatividade de negros nos espaços de poder.
Winnie diz que as pautas do movimento negro ainda não entraram na agenda política do país. Ela cita exemplos como a desmilitarização da polícia, o combate à violência policial, políticas de cotas raciais mais amplas, a reconsideração da política antidrogas e a titulação de terras quilombolas. Somam-se ainda as necessidades atuais diante da pandemia da Covid-19, como a obrigatoriedade de registro de raça e cor nos óbitos pela doença.
Selma Dealdina, secretária-executiva do Conaq, organização que luta pela causa quilombola, afirma que o movimento negro tem se esforçado em proteger as políticas públicas já realizadas e que não tem encontrado espaço para promover outras conquistas
— A gente está gastando uma grande energia para defender o pouco que foi conquistado. Enquanto estiver esse governo aí, não vai ter avanço. Bolsonaro tem um projeto e esse projeto não inclui a gente — afirma Selma.
Para tentar superar essas barreiras, algumas iniciativas da sociedade civil foram criadas. Na semana passada, o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente, lançou o "Movimento Ar". O projeto reúne dez propostas, entre elas mudanças nos protocolos policiais, criação de bolsas de estudo para jovens negros e um fundo para financiamento de práticas educacionais e empreendedoras.
O nome do projeto é uma alusão direta a George Floyd, que morreu sufocado. O objetivo, segundo o manifesto, é propor "ações objetivas capazes de combater o racismo em sua raiz". Algumas pré-campanhas eleitorais de candidatos de esquerda já começaram a divulgar a iniciativa, como Luna Zarattini, do PT.
Vicente se reuniu com o Comando Geral da Polícia Militar de São Paulo, na última quinta-feira, para apresentar o projeto.
Inércia dos partidosA queixa dos ativistas acabou sendo corroborada pela falta de clareza de dirigentes partidários sobre a questão. Questionados pelo GLOBO se houve algum debate interno para implementar mudanças nas siglas, os líderes hesitaram. Um dirigente do PDT afirmou que “não precisou acontecer a morte do George Floyd para o PDT tomar suas iniciativas”. No PSOL, a resposta ouvida foi de que “não há nada específico sobre isso, porque essa já é uma pauta abraçada pelo partido”. No PSB, nenhuma mudança interna foi citada.
Uma liderança do PT elencou medidas tomadas pelo partido nos últimos meses, mas nenhuma resposta direta ao debate das últimas semanas, pós-George Floyd. Rede, PCdoB, PSDB e MDB não responderam ao GLOBO.
Em São Paulo, houve reação do governo de João Doria (PSDB) aos recentes episódios de violência policial no estado, envolvendo mortes e agressões praticadas pelos agentes. Doria afirmou que a polícia passará por um novo treinamento, que deve ocorrer a partir de julho.
O Globo