A Saveiro prata sobe o morro devagar, dando passagem para motos e outros carros apressados. “Aqui todo mundo conhece e ama ela”, comenta uma moradora enquanto acena para o veículo da entrada de um salão de beleza. Na caçamba da picape a passageira posa para fotos e acena para as pessoas na rua. “Vou me levantar pra vocês me verem melhor!”, diz Luiza Erundina, candidata a vice-prefeita pelo PSOL, com o suor escorrendo no rosto. São 14h e termômetro bate 30 graus. Dentro da estrutura plástica, construída na traseira do carro para proteger esta mulher de cabelos brancos prestes a completar 86 anos da covid-19, está mais quente ainda. Mas para esta paraibana de Campina Grande que se tornou retirante ainda criança para fugir da seca, tudo parece estar bem. Apelidado de Cata Voto, o papa móvel psolista finalmente chega ao seu destino: a favela Luiza Erundina, no Jardim São Luiz, zona sul de São Paulo.
A homenagem a ela é antiga, e remonta à época em que Erundina foi a primeira mulher e primeira petista eleita para governar a capital, entre 1989 e 1992. Quase três décadas depois, parece que algumas lembranças são difíceis de apagar: “Foi ela que urbanizou tudo aqui e deu os lotes pra gente. Ela colocava a escrituras no nome das mulheres chefes de família, porque aí se os maridos se mandassem a casa continuava com elas”, conta Cláudia Pires, 47, uma criança à época da gestão Erundina. Do portão de casa ela observa a ex-prefeita discursar no campinho do Jardim São Luiz —sempre a bordo do Cata Voto, para evitar qualquer exposição ao novo coronavírus. A concessão dos lotes para mulheres depois se tornaria uma prática comum —Também o ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB) viria a adotar esse modelo. Mas à época do governo petista as coisas não eram tão simples.
Erundina fez uma gestão marcada pela inversão de prioridades, apostando em obras e iniciativas voltadas para a população mais pobre. Mutirões de moradia, construção de hospitais e creches nas periferias são algumas das principais bandeiras da prefeita. Por outro lado, a falta de apoio na Câmara fez com que algumas de suas propostas, como a tarifa zero —hoje uma bandeira da campanha do PSOL em São Paulo— não saísse do papel. Os avanços nas áreas de moradia e educação também não se traduziram em votos no pleito de 1992, e ela foi sucedida por Paulo Maluf na prefeitura. A esta se seguiram outras quatro tentativas frustradas de se eleger prefeita. Ao EL PAÍS ela alega ter sofrido “boicote, não só do Legislativo, mas da elite política e econômica, até por preconceito contra mim, mulher, nordestina, de esquerda, pobre, ligado à população dos cortiços e favelas”.
Na eleição municipal de 2020 coube a Erundina o papel de tentar construir uma ponte entre a população periférica e um partido pequeno, com pouca capilaridade nas favelas e que obteve sua melhor votação no primeiro turno em bairro de classe média de São Paulo. As agendas da candidata a vice foram organizadas para incluir no roteiro comunidades onde sua gestão realizou obras importantes. Indagada sobre o fraco desempenho fraco do PSOL nas regiões mais pobres, ela diz que “é uma questão de tempo”. “O partido é como um ser vivo. Embora o Boulos tenha essa trajetória de luta e de vida dedicada aos menos favorecidos, sendo bem conhecido no meio intelectual, não é fácil tornar uma pessoa conhecida em toda a cidade”, afirma. Ela destaca ainda o fortalecimento da legenda no Legislativo: “O partido tinha dois vereadores, agora são seis. Na Câmara Federal eram seis, agora são 10. Boa parte mulheres, negros, LGBTs. Tudo isso vai configurando o PSOL numa perspectiva de modernidade e inclusão”.
Apesar do recall nas periferias, a missão de Erundina não era simples. Sentado nas escadas de uma igreja evangélica neopentecostal em frente ao campinho de futebol do Jardim São Luiz, o ajudante de obras desempregado Cleiton Santos Paes, 28, não dá bola para a senhora de cabelos brancos discursando dentro de uma caixa de plástico transparente. O jovem, que alega não se “ligar muito em política”, diz ter votado “no 10, Celso Russomanno”. “Eu sei das histórias do que ela já fez aqui no bairro, mas escolhi votar nele, mesmo sabendo que ia perder”.
Mas naquela tarde na favela Luiza Erundina, o desânimo de Cleiton com o processo político era a minoria. Um grande grupo de jovens (principalmente mulheres) cerca o Cata Voto e acompanha a carreata de Erundina, dançando os jingles em ritmo de funk, forró, pagode e trap. É neste segmento (e entre os mais escolarizados) que Boulos tem o melhor desempenho nas pesquisas de opinião. O professor do ensino municipal Edvan (que não quis informar o sobrenome com medo de retaliação), de 32 anos, acompanha de moto a carreata de Erundina. “Eu sou preto, pobre e morador de periferia. Moema e Higienópolis já tem seu candidato, e é o 45 [número de Bruno Covas]. Como eu vou votar 45? Pra mim esse número é sinal de repressão e violência”, diz.
Após mais de duas horas de carreata e discursos praticamente ininterruptos, Erundina parece estar ficando rouca. A voz some por alguns segundos, para logo em seguida retornar em tom inflamado: “Viva o socialismo e o poder popular!”, grita a candidata. O relógio marca 16h30 quando ela se despede e o Cata Voto deixa o campinho. Renata Souza, candidata derrotada do PSOL à prefeitura do Rio e ex-chefe de gabinete de Marielle Franco, veio a São Paulo para “dar uma força” para a campanha. Cria da favela da Maré, a deputada estadual fez questão de subir o morro com Erundina, e fala sobre a importância da octogenária para a política. “É emocionante ver o que ela fez, não só aqui, mas como legado para diminuir a desigualdade na cidade de São Paulo. Ela é referência e inspiração para nós, mulheres na política, independentemente da idade dela”, afirma.
Já em casa, Erundina descansa e se prepara para os compromissos do próximo dia. No final do dia chega a notícia de que Guilherme Boulos testou positivo para a covid-19 e ficará afastado da campanha no final de semana. “Eu faço agenda de dez, 12 horas por dia. Vou até a noite. Tenho muita energia ainda”, diz ela em entrevista ao EL PAÍS por telefone. A candidata se empolga quando fala da frente de esquerda que se uniu em torno da chapa do PSOL no segundo turno. “Ganhando ou perdendo, o encontro dessas forças sinaliza uma possibilidade de manutenção dessa unidade para enfrentar o bolsonarismo nas próximas eleições”, diz. A formação de uma aliança deste tipo, envolvendo o PT e demais partidos do campo progressista para 2022, no entanto, ainda é um sonho tendo em vista a dificuldade de costurar um acordo entre as diversas legendas que anseiam o protagonismo da chapa. Questionada sobre a viabilidade de um acordo, Erundina responde de imediato: “Ué, quem não sonha já está velho”.
El País