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Kathlen Romeu: caso da jovem morta há um ano revela ausência de plano de segurança no RJ

Outras 1.161 pessoas foram baleadas na região metropolitana desde a morte da jovem, segundo Instituto Fogo Cruzado

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Kathlen Romeu: caso da jovem morta há um ano revela ausência de plano de segurança no RJ

Outras 1.161 pessoas foram baleadas na região metropolitana desde a morte da jovem, segundo Instituto Fogo Cruzado


Há um ano, a jovem negra Kathlen Romeu foi baleada durante uma operação policial no Complexo do Lins, zona norte do Rio de Janeiro, e não resistiu. Ela estava grávida de quatro meses do primeiro filho.

A designer de interiores havia se mudado da comunidade um mês antes, justamente por temer a violência na região. Para a diretora executiva do Instituto Fogo Cruzado, Cecília Oliveira, o caso mostra que "não existe um plano de segurança do estado do Rio''.

“A morte da Kathlen é um retrato da ausência de um protocolo de atuação policial que proteja a vida dos moradores”, afirma. A Polícia Civil concluiu que o tiro partiu da arma de um policial militar.

Desde sua morte, outras 1.161 pessoas foram atingidas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro durante ações ou operações policiais, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado. Assim como Kathlen, outras 504 pessoas morreram.

No último final de semana, amigos, familiares e movimentos de favelas se reuniram no Lins para homenagear Kathlen. O ato cobrou justiça, inaugurou o memorial e cobriu com grafites os muros marcados de tiro na localidade conhecida como Beco da 14.

Cinco policiais que participaram da ação respondem por falso testemunho e fraude processual, acusados de alterar a cena do crime. O Ministério Público do Rio (MP-RJ) informou que a 3ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal Especializada do Núcleo Rio de Janeiro aguarda a remessa do inquérito policial relatado pela autoridade policial. "O Juízo da Auditoria Militar está ainda na fase da oitiva de testemunhas da acusação e, em seguida, da defesa”, esclarece a nota.

Medidas

Na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) tramita o projeto de lei (PL) Kathlen Romeu que proíbe a prática de "troia", quando agentes da polícia invadem ilegalmente casas para ficarem escondidos de tocaia e atirarem assim que o suspeito se aproxima, de autoria da deputada Renata Souza (Psol).

Além do PL, Cecília Oliveira cita outros instrumentos que podem garantir uma atuação policial pautada na legalidade, como a implementação das câmeras nos uniformes e um plano de redução da letalidade. Medidas essas que estão previstas na ADPF 635 apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou a restrição das operações nas favelas durante a pandemia.

“Um plano de segurança pública precisa ter diretrizes e metas claras sobre quais os principais objetivos no enfrentamento à criminalidade e à violência; detalhar com os diferentes órgãos de segurança pública como eles trabalharão juntos, cada um no exercício das suas funções. O Ministério Público, responsável por controlar externamente as atividades policiais, precisa ter seu núcleo de investigação fortalecido, e não enfraquecido, como ocorreu com o fim do GAESP [Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública]”.

Cenário nacional

De acordo com a última edição Anuário Brasileiro de Segurança Pública, com dados de 2020, as mortes decorrentes de intervenção policial no Brasil somaram 6.416 no primeiro ano da pandemia.

A pesquisa identificou que 50 cidades brasileiras concentraram 55,8% do total de mortes por essa causa. O estado do Rio de Janeiro se destaca na lista com o maior número de municípios, 15 ao todo.

As estatísticas ainda apontam que a raça é um fator determinante sobre o perfil das vítimas fatais da violência policial no Brasil. Cerca de 79% eram negras naquele ano, padrão que se repetiu em levantamentos anteriores. Isso significa que a taxa de letalidade policial entre negros é 2,8 vezes superior à verificada entre brancos.

"A estabilidade da desigualdade racial inerente à letalidade policial ao longo das últimas décadas retrata de modo bastante expressivo o déficit de direitos fundamentais a que está sujeita a população negra no país", revela a pesquisa.

A faixa etária e o gênero das vítimas também foram analisadas. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, jovens de até 29 anos representaram 76% das vítimas de letalidade policial no país em 2020. Já o percentual de mulheres vitimadas dobrou, saltando de 0,8% (2019) para 1,6% (2020).

Efeitos da violência

“A violência afeta todas as fases do desenvolvimento da vida das pessoas, especialmente daquelas que moram em áreas de periferia e favelas”, afirma Cecília Oliveira, citando uma pesquisa que demonstra os efeitos na saúde física e mental da população que vive em contexto de violência armada.

Com a pesquisa “Construindo Pontes”, a ONG Redes da Maré traçou um raio-x da condição permanente de medo que aflige os moradores da Maré, bairro que é considerado o maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro localizado na zona norte.

“Estresse pós-traumático, ansiedade, depressão e tentativas de suicídio são alguns dos transtornos frequentes apontados pela pesquisa, que aponta também sintomas físicos como perda de apetite, vontade de vomitar e mal-estar no estômago e calafrios ou indigestão”, elenca Oliveira.

Tiroteios, operações policiais, ocupações militares, confrontos, mortes por intervenção do Estado, restrições à circulação. Essas são algumas situações que podem causar sofrimento na vida de pessoas expostas à violência recorrente, segundo a Redes da Maré. Ter alguém próximo atingido por uma bala perdida é o medo que mais de 70% dos entrevistados relataram sentir sempre ou muitas vezes.

Entre os jovens de 18 a 29 anos, em específico, a pesquisa mostra que 59% estiveram em meio a tiroteios na Maré. Para Cecília, que é especialista em segurança pública, o efeito da violência no desenvolvimento das crianças é ainda mais grave.

“A pesquisa ‘Educação em Alvo – Os Efeitos da Violência Armada nas Salas de Aula’, feita pelo Fogo Cruzado, em parceria com a DAPP/FGV [Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas] em 2017, concluiu que a exposição à violência gera efeitos duradouros e afetam diretamente nas possibilidades de vida dos cidadãos e que isso gera um impacto direto nas habilidades desenvolvidas pelas crianças, antes mesmo de atingirem a idade escolar”, conclui Cecília.

Brasil de Fato