Justiça para Emily e Rebecca
A elucidação do assassinato das duas meninas é um ato da mais extrema necessidade para a democracia brasileira
Em 4 de dezembro de 2020, no bairro de Gramacho, Duque de Caxias, Baixada Fluminense, as primas Emily Victória da Silva Moreira Santos, de 4 anos, e Rebecca Beatriz Rodrigues dos Santos, de 7, brincavam na porta de casa como tantas outras crianças da favela do Barro Vermelho. Era sexta-feira, por volta das 20h30. Policiais rondavam a comunidade. Um único tiro de fuzil matou as duas meninas. Na ocasião, o inquérito não conseguiu demonstrar a autoria do disparo, que moradores atribuíram aos policiais. Quatro anos depois, as famílias tentam a reabertura do caso, sob o patrocínio da Defensoria Pública, amparados pelo Projeto Mirante, iniciativa de pesquisa e extensão da Universidade Federal Fluminense, que desenvolve saberes e práticas para a investigação independente de violações dos direitos humanos.
O direito à segurança, uma novidade inaugurada pela Constituição de 1988, segue como uma promessa irrealizada num país que conta em minutos o tempo entre um e outro assassinato. Em 2023, foram 46.326 mortes violentas, de maioria negra e pobre. Um relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância, elaborado em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra que 1.261 crianças e adolescentes foram assassinados no Estado do Rio de Janeiro, entre 2021 e 2023. A cada sete mortes violentas e intencionais de jovens, uma está relacionada à repressão criminal nas periferias e favelas. A política criminal baseada no confronto, além de ineficiente, representa um risco para o Estado de Direito, por incorporar o belicismo ao cotidiano e minar assim a democracia como um valor universal.
Os assassinatos de Emilly e Rebecca ocorreram em plena vigência da liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, com a qual se instituiu, pela primeira vez no país, um regramento das intervenções policiais. Na investigação dessas mortes, a Lei Estadual 9.180/2019, que determina prioridade na apuração de crimes contra crianças e adolescentes, foi ignorada. Tais desconsiderações sinalizam a resistência dos órgãos da segurança pública às tentativas de controle democrático. Esse comportamento tem raízes no período escravocrata, que formatou a sociedade brasileira e as suas instituições. O perpetuado racismo de Estado tem sido um imenso obstáculo à democratização dos aparelhos de segurança e à própria universalização da cidadania.
O desafio que as famílias de Emilly e Rebecca começam a enfrentar agora, na luta pela reabertura do caso, não é só por reparação judicial, diante do sofrimento indizível. Não esquecer os mortos é mais que fazer justiça às vítimas. A elucidação desses crimes é um ato da mais extrema necessidade para a democracia brasileira, sobretudo nesse tempo confuso e de ameaças golpistas. A esperança, que é a chave do futuro e a alma da política, se alimenta da memória e da justiça.
*Renata Souza, deputada estadual (PSOL-RJ), é autora da Lei Estadual 9.180/2019, Íbis Pereira, doutor em história pela Uerj, foi comandante-geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro
O Globo
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