Feministas históricas e jovens ativistas debatem realidade das mulheres brasileiras
Na mesa de abertura do seminário, Jacqueline Pitanguy (presidente da CEPIA; Comba Marques Porto ( juiza aposentada e consultora do evento); Octávio Costa (Presidente da ABI); Glória Alvarez (diretora de Mulheres e LGBTQIA+ da ABI); e Ana Carolina (representante da ONU Mulheres)
A Diretoria de Mulheres e LGBTQIA+, da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) promoveu, no dia 30 de agosto, o evento 48 anos de ousadia feminista – ecos do seminário ONU-ABI 1975 para prestar justa homenagem ao ativismo feminista que, há 48 anos, vem trazendo a público debates sobre a realidade das mulheres, marcadas por diferentes formas de discriminação: das mais grosseiras às mais sutis. Por incrível que pareça, através desse evento foi possível confirmar que o regime machista, amparado na cultura patriarcal, está vivo e se atualiza, deixando suas marcas nas relações sociais, a começar no âmbito das relações de família. Duas gerações de feministas participaram das palestras e debates: as históricas e as mais recentes ativistas.
Na abertura, o Presidente da ABI, Octávio Costa destacou a “coragem das mulheres que organizaram o ‘Seminário ONU-ABI 1975’”, lembrando que o regime ditatorial-militar ainda vigorava, torturava e matava opositores, como o jornalista Wladimir Herzog.
A representante da ONU Mulheres, Ana Carolina Querino, detalhou o trabalho que vem sendo desenvolvido no Brasil pela entidade, a Ministra das Mulheres, Aparecida Gonçalves, impossibilitada de comparecer, gravou uma mensagem, exibida durante o evento, justificando sua ausência e contando que o foco do ministério hoje é debater, em todo o Brasil, a questão de misoginia. A coordenadora da CEPIA, Jacqueline Pitanguy, e a advogada, escritora e juíza aposentada Comba Marques Porto, participantes do evento de1975, recordaram passagens ocorridas há 48 anos.
A íntegra do evento pode ser vista no Youtube, no canal ABITV.
Destacamos, a seguir, alguns momentos desenvolvidos na temática de cada mesa do seminário.
Violência
A primeira mesa foi sobre Violência doméstica e sexual contra mulheres, meninas e população LGBTQIA+. Nela, a deputada Estadual Renata Souza (PSOL/RJ) observou que “ vivemos entre avanços e retrocessos, daí a importância da representação das mulheres no Parlamento”. Sublinhou ainda a importância de se garantir no orçamento verbas destinadas às ações relacionadas à “vida das mulheres”.
Já a advogada Leila Linhares, coordenadora da CEPIA, apontou a naturalização da violência contra as mulheres, destacando a necessidade das ações de educação e prevenção. Reportou a aprovação da Lei Maria da Penha como uma nova etapa de enfrentamento à violência doméstica e familiar, o que somente foi possível em razão do que veio a ser disposto no parágrafo 8º. do artigo 226, da Constituição Federal de 1988. E a advogada Leonor Paiva apontou o apagamento dos feitos históricos das mulheres e o peso da cultura patriarcal, sublinhando que “ a família é o espaço do patriarcado” e destacando a presença histórica dessa cultura machista em nossos códigos e demais leis.
Tese confirmada pela física Ligia Souza, que relatou a experiência da Comissão Violência contra a Mulher, na cidade do Rio de Janeiro, ao final dos anos 1970. A cientista lamentou que o patriarcado permaneça “ileso” e invocou o ativismo do SOS Mulher, no Rio, lembrando que as integrantes do grupo eram “ousadas, destemidas e ruidosas”. E indagou à plateia: “ existem grupos autônomos como os nossos? Onde estão?”.
Direitos reprodutivos
A sessão da tarde abriu com a exibição de um histórico curta-metragem da cineasta feminista Eunice Gutman, presente no evento, o Vida de mãe é assim mesmo?. O filme aborda as dificuldades da vida reprodutiva de uma empregada doméstica, em face das consequências da incriminação do aborto no Brasil.
O tema do curta teve prosseguimento na mesa que discutiu: Saúde, diversidade sexual e direitos reprodutivos. A advogada Pamela Brito, da OAB-Mulher, abordou o instigante tema da violência obstétrica. Defendeu o parto fisiológico, observando as impropriedades e desmandos dos partos hospitalares, destacando a eliminação do protagonismo das gestantes nas práticas médicas, no atendimento à gestação, parto e puerpério. Observou que a violência obstétrica é praticada não só por médicos/as como também por demais profissionais da área, caracterizando-se como ato que “ fere os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres”.
A psicóloga e professora Paula Land Curi, da UFF, levou ao evento a experiência de seu projeto de extensão: o trabalho de atendimento psicológico às mulheres, abrangendo as que sofrem em consequência da criminalização do aborto. O projeto “Mulherio tecendo redes”, da UFF, desenvolve-se em parceria com a Comissão de Mulheres da ALERJ.
Já a jornalista Maíra Donnici clamou por um “feminismo mais abrangente”, observando que “ só haverá equidade quando todas/os tiverem as mesmas armas”. A jovem entende que “ não se faz feminismo sem homens e quando faltam “as pretas e as não-heteros”. Comentou que não se vê contemplada pelo “feminismo branco”.
Com a feminista histórica Jacqueline Pitanguy, coordenadora da CEPIA, o cenário de “discriminação e preconceito” foi reconfirmado. Ela lembrou “a luta contra o estigma nos tempos da descoberta da AIDS”. Apontou as dificuldades para construir o campo de discussão sobre a violência doméstica e suas consequências sobre a saúde das mulheres, observando que, quanto a este tema, o Brasil se adiantou ao aprovar em 2006 a Lei Maria da Penha onde, em seu artigo 6º. declara que “a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”.
Trabalho
A última mesa foi Mulheres, conjuntura econômica, perspectivas de emprego e renda. A economista e professora a UFF Hildete Pereira de Melo, situou o trabalho no sistema capitalista e apontou o lema que marca as reflexões desde o século XX: “salário igual para trabalho igual”. Para a economista a educação é a chave do enfrentamento ao capital. Invocou a exploração das mulheres no emprego doméstico, a despeito da lei (Lei Complementar 150/2015). Hildete acredita que a educação para a submissão está no cerne da precarização da força de trabalho feminina.
Já a jovem Anna Carolina Meireles, professora de história, integrante do grupo Resistência feminista observou a ofensiva do capital e seus reflexos no cotidiano, marcando perdas de direitos. E indagou: “ o que ficou de legado às novas gerações? “. Para ela a realidade aponta também a precarização dos serviços públicos e é notório o avanço do conservadorismo e seus ataques ao ativismo feminista. “A pauta conservadora sustenta o modelo capitalista”. A professora cita o home school como movimento de liberação da responsabilidade do Estado para com a educação. Isto em favor do capital. Mas ressalta que as redes de resistência estão atuantes. Entende que a pauta feminista é uma forte resistência ao capitalismo.
Maria dos Camelôs, 48 anos de idade, mãe de quatro filhos, trabalhou como empregada doméstica, mas nunca teve “carteira assinada”. Há 28 anos atua como camelô na cidade do Rio de Janeiro. Integra a CAMU, associação da categoria. Disse ter se “formado nas faculdades de esquina” e que foi trabalhar “na rua” depois que saiu de um relacionamento abusivo. Contou que sua luta é pelo direito ao trabalho e à moradia. Alegou que “a guarda da patrulha Maria da Penha é a mesma que espanca camelôs nas ruas”. E revelou que as mulheres camelôs são em maioria “mães solo”. (Quase ao término de sua fala, Maria recebeu ligação com notícia de conflito entre a guarda e camelôs no Centro da cidade e pediu para se retirar).
O encerramento do evento foi com a economista e professora do Instituto de Economia da UFRJ, Lena Lavinas. Ela observou que “no capitalismo contemporâneo, as violências estão relacionadas às dívidas das pessoas como vítimas do desprezo social”. Das pessoas endividadas, conta Lavinas, 52% são mulheres. Para ela, as ofertas dos bancos ampliam o endividamento. “As pessoas, na verdade, não são livres para ‘acordar’ com os bancos. A democratização do acesso ao crédito aceita pelo Estado só agrava a situação”. E conclui sua participação afirmando que “a essência do capitalismo financeirizado é nociva às pessoas”.
ABI