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Estado abre brecha para a volta de agentes de segurança expulsos nos últimos 10 anos

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Estado abre brecha para a volta de agentes de segurança expulsos nos últimos 10 anos

Policiais militares e civis, Bombeiros, agentes penitenciários e servidores do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase) expulsos do serviço público nos últimos dez anos poderão pedir reintegração aos seus respectivos órgãos. As condições para que possam fazer o requerimento — entre elas a de que a demissão administrativa não tenha sido confirmada pela Justiça, com processo transitado em julgado, não cabendo mais recurso — constam de resolução conjunta, publicada ontem no Diário Oficial do estado, como antecipou a colunista Berenice Seara, do jornal “Extra”. O novo ato sucede um decreto do governador Cláudio Castro, publicado em janeiro e alterado em março, criando a comissão mista que avaliará os pedidos.

A possibilidade do retorno de servidores expulsos levantou preocupação entre especialistas e políticos. O deputado Carlos Minc, líder do PSB, lembrou que, em 2020, um grupo de parlamentares identificado com as forças de segurança tinha apresentado um projeto de lei que previa, segundo ele, uma anistia para cerca de duas mil pessoas. Com a reação da oposição na ocasião, a proposta baixou à diligência, e não foi votada.

— No passado, havia uma denúncia de que vários dos que seriam reintegrados poderiam ser milicianos. Quando a oposição fez movimento contra o projeto, áreas de dentro do governo gostaram, entre aspas, porque também não queriam colocar esses dois mil para dentro. Seria a desmoralização de todos os processos que levaram ao afastamento — observa Minc. — Creio que, com a nova iniciativa, o governo tente dar uma resposta à pressão da bancada da bala, da bancada, dos policiais, do PL e de outros partidos da sua base. Não deixa de haver um certo risco, mas me parece medida menos radical e mais cautelosa, que o projeto da anistia. Agora, são estabelecidas pré-condições, e os casos serão analisados por uma comissão.

A deputada Renata Souza (PSOL) também lembrou o projeto de 2020 e pediu que o novo instrumento seja estudado por sua equipe.

— A gente sabe que as pessoas expulsas passaram por um processo administrativo, espero que sério, que pudesse levar a essa conclusão. Agora, pode haver algumas situações especiais, em que houve perseguição política. Mas nos casos de pessoas que desonraram a farda, essas reintegrações são preocupantes e danosas para o poder público porque descredibilizam a instituição que está recebendo essa pessoa de volta. É obvio que a gente não quer cometer injustiça, mas há que haver muito critério. No Rio de Janeiro, as milícias criaram um governo paralelo, e elas são formadas por ex-policiais ou policiais que foram expulsos.

“Inúmeros pleitos”

O governo se manifestou por e-mail e não informou quantas pessoas foram expulsas das forças de segurança nestes dez anos, por razões como corrupção e homicídio. Disse que instituiu a comissão mista “após inúmeros pleitos e com o objetivo de alavancar as análises dos pedidos de revisão administrativa cujo objeto trate da reintegração e/ou reinclusão”. A intenção, segundo o Palácio Guanabara, “é que agentes que têm o direito de reingressar na corporação, após terem comprovado sua inocência nos processos judiciais, possam formalizar seus pedidos”.

Ainda segundo a nota, entre as regras para as solicitações estão: comprovar a ocorrência de fato novo no processo judicial ou administrativo que beneficie o solicitante nos últimos dez anos; e não possuir nenhuma condenação envolvendo crime que repercuta na atividade. O solicitante deverá ainda apresentar os documentos listados na resolução conjunta, comprovando ficha criminal limpa.

A resolução é assinada pelos titulares da Casa Civil e das pastas da área de segurança. Já a comissão mista é formada por servidores de todos os órgãos envolvidos. O pedido de reexame deve ser feito pelo interessado em 30 dias, a contar de 23 maio. O requerimento poderá ser feito on-line, via Sistema Eletrônico de Informações (SEI), através de formulário próprio.  

Ao analisar o novo instrumento, o antropólogo, bacharel de Direito e coronel da reserva Robson Rodrigues o classificou como temerário:

— Muito provavelmente há algum casuísmo. Uma hipótese é de que alguém possa estar sendo beneficiado e abrindo a porteira para outros. Isso traz uma insegurança jurídica e para a sociedade. Você está revendo uma demissão feita pela própria administração. Com isso, você instaura não só uma instabilidade político-administrativo como a desconfiança da população em relação aos órgãos e a essas decisões.

Rodrigues chama a atenção para o parágrafo segundo do inciso XII, do artigo 5º da resolução conjunta, que trata dos pré-requisitos para a revisão ser solicitada. O parágrafo se refere a recursos contra a expulsão impetrados na Justiça. Diz que “poderão ser interpostos requerimentos nas hipóteses de transação penal (acordo realizado entre o acusado e o Ministério Público, no qual o acusado aceita cumprir as determinações e as condições propostas pelo promotor em troca do arquivamento do processo), suspensão condicional do processo, suspensão condicional da pena, extinção da punibilidade e de arquivamento de inquérito policial”.

— Essa é uma postura muito benéfica. Estão criando a possibilidade de alguém que já foi condenado pedir uma revisão administrativa. Isso é temerário — alega Rodrigues.

O antropólogo citou ainda o parágrafo único do artigo 2º da resolução conjunta. O texto estabelece que “os casos de demissões ‘ex-officio (por obrigação do ofício) das corporações militares (PM e Bombeiros) do Estado do Rio de Janeiro, decorrentes do Conselho de Justificação (órgão de última instância das instituições militares, que julga processos administrativos apenas de oficiais)”, não serão analisados pela comissão mista.

— Por que a medida vale apenas para oficiais? Os praças também têm seus conselhos. E como ficam os policiais civis, agentes do Seap e do Degase? — questiona.  

O antropólogo e ex-comandante do Bope Paulo Storani também é voz contrária à revisão das expulsões:

— Para um policial ser expulso, é preciso o devido processo legal. Ninguém é expulso pela vontade do comandante geral, do comandante do batalhão. É todo um processo, desde a abertura de inquérito, investigações preliminares, investigações posteriores. Há conselhos para para avaliar a conduta. Isso é demorado. É dada oportunidade de acesso aos autos. Os acusados podem constituir advogado para mantê-los nas instituições. Quando se chega a uma decisão final, acabou a história. E há tentativas de embargar o processo, buscando falha. Muitos bandidos encontraram falhas processuais e permaneceram no serviço público.

“Ser transparente”

O sociólogo Ignacio Cano, professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), cita a dificuldade de afastar um funcionário, embora pondere que, “em alguns caso, a decisão possa ter sido errada”. Mais do que pensar em revisão, para ele seria melhor investir na decisão inicial, se vale a pena expulsar ou não.

— Não sou contrário ao mecanismo. Mas não sabemos como vai funcionar. Isso tudo tem que ser transparente, não só para as pessoas que vão recorrer, mas para a sociedade, que precisa saber como isso está acontecendo — observa Cano. — Entendo também que o melhor seria investir em comissões pré-expulsão, para decidir se esse é o melhor caminho ou se há outras alternativas..


O Globo