Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa: a luta permanente pelos direitos dos povos e comunidades de terreiro
Renata Souza*
Pai Dário**
Faz exatamente 25 anos desde que aialorixá Gildásia dos Santos, a Mãe Gilda de Ogum, tornou-se mais uma
ancestral. Foi no dia 21 de janeiro de 2000 que Mãe Gilda de Ogum, fundadora do
Ilê Axé Abassá de Ogum, em Salvador, retornou ao Orun após complicações de
saúde desencadeadas por violências motivadas por racismo religioso.
Em 2007, o presidente Lula instituiua Lei n° 11.635/2007 que define o 21 de janeiro como Dia Nacional de Combate à
Intolerância Religiosa. Essa data foi escolhida em memória à vida e à luta pela
valorização das tradições do povo de terreiro de Mãe Gilda de Ogum. Sendo
assim, essa data, logo no início do ano, é para a gente não esquecer da
importância dela e tantas outras ialorixás e babalorixás que têm lutado
incansavelmente pela preservação e continuidade das tradições de matriz
africana. E mais, é um momento para quese compreenda de uma vez por todas a gravidade do racismo religioso na vida
cotidiana dos povos e comunidades de terreiro. Esse tipo de racismo se
manifesta como morte física, morte simbólica, morte cultural, morte
epistemológica, em suma, o extermínio da filosofia de vida do povo negro.
Infelizmente, passados 25 anos, adespeito das articulações, estratégias e lutas históricas das comunidades
terreiro, o cenário de violências tem crescido e se intensificado. Mesmo com a
criação de leis e políticas durante esses anos, que buscam atenuar e enfrentar
os crimes de racismo religioso, as medidas ainda são muito insuficientes. Por
um lado, o dia a dia nas ruas, bairros, favelas é marcado por uma complexidade
que extrapola as ações institucionais. Mas por outro, o próprio compromisso por
parte dos governos e instituições públicas ainda deixam a desejar no que se
refere ao seu empenho em transformar essa realidade triste e cruel que assola
as religiões de matriz africana.
Para ilustrar, citamos dois campos emque essas dificuldades se evidenciam:
1) No campo da educação, a Lei10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura
afro-brasileira e africana nas escolas, é um importante instrumento para
promover o respeito às tradições de matriz africana e combate às várias
expressões do racismo desde a infância. Contudo, sua aplicação ainda não é uma
realidade na maioria das escolas.
2) No campo jurídico, embora o racismoreligioso seja tipificado como crime pelo Código Penal e pela Lei 7.716/1989, a
realidade é que poucos casos resultam em condenações. Além disso, muitos crimes
nem chegam a ser registrados, seja pela ausência de acolhimento adequado às
vítimas, seja pela falta de formação específica de policiais para lidar com
situações de racismo religioso.
Por isso, o comprometimento dosgovernos, das instituições públicas, é indispensável para enfrentar o racismo
religioso de forma efetiva. No entanto, os exemplos do campo da educação e do
campo jurídico ilustram como ainda estamos distantes de uma transformação capaz
de garantir o direito de ser, existir, interagir e viver do povo de
terreiro.
Como nos colocamos na lutacomprometida e permanente por essas transformações, buscamos navegar pelas
águas fartas de sabedoria e inspiração de nossa grande ancestral Mãe Beata de
Iemanjá. Uma das suas tantas pérolas de sabedoria deixadas para nós por ela,
diz assim: “não temos que nos prender somente aos tempos conturbados que
vivemos, mas sim à forma como poderemos transformá-los em dias melhores para
todos nós”. A sabedoria de Mãe Beata de Iemanjá nos lembra que o enfrentamento
ao racismo religioso requer não apenas resistência, mas também a construção de
alternativas que garantam a dignidade e o respeito aos povos e comunidades de
terreiro.
Não há dúvidas de que foi desseanseio por transformar os “tempos conturbados” que os terreiros vivem, em dias
melhores, que nasceu a Lei estadual n° 9.512/21, a Lei do Observatório Mãe
Beata, de nossa autoria. Assim, o Rio de Janeiro assumiu a liderança nesse
debate, aprovando a primeira lei do Brasil a instituir um observatório contra o
racismo religioso. O Observatório foi fruto de provocações da sociedade civil,
do Movimento Mulheres de Axé do Brasil em 2021 e de diversas articulações
políticas que já vinham sendo realizadas neste tema pela nossa mandata e
comunidades de terreiro.
A realização do “Seminário Mãe Beatade Iemanjá”, em parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos
Humanos, nos dias 06,07,08 de dezembro de 2024, foi um passo importante na
concretização de dias melhores. Durante o encontro, confluímos, como ensinou mestre quilombola Nêgo Bispo, econjuntamente, poder público, movimentos e lideranças de terreiro e
pesquisadores, apresentaram caminhos para lidar com os desafios da coleta,
sistematização e unificação dos dados. Reafirmamos a necessidade de
comprometimento pela implementação plena da lei estadual n° 9.512/21, pelo
governo do estado do Rio de Janeiro, fazendo do “Observatório Mãe Beata de
Iemanjá sobre Racismo Religioso” uma referência nacional de uma política
pública.
Que juntas, juntos e juntes possamosnos banhar nas águas de Iemanjá e nos inspirar nessa grande iyabá que protege e criar as possibilidadespara prover uma vida digna e plena para seu povo, bem como a força, luta e compromisso político de MãeBeata pela garantia da preservação de nossas tradições ancestrais.
Neste espírito de luta e (re)existência, convidamos todas, todes e todos para o Presente de Iemanjá, que
acontecerá no próximo dia 2 de fevereiro, no Arpoador, Rio de Janeiro
(concentração às 8h da manhã). Este evento é um momento para honrarmos nossa
mãe Iemanjá, pedir por proteção e renovar nossas energias para seguir na luta
por um Brasil livre de racismo religioso e demais opressões de raça, gênero,
classe, sexualidade e orientação sexual que assolam o povo brasileiro.
Além disso, o Presente de Iemanjá étambém um ato político e cultural de reafirmação da presença, beleza, encanto e
potência das religiões de matriz africana no Rio de Janeiro. Ao nos reunirmos
nas areias do Arpoador para ofertar nosso presente à grande mãe Iemanjá,
cantar, dançar e festejar, fortalecemos os laços com nossa ancestralidade
negra. É a potência da Rainha do Mar invocando à sociedade brasileira a
reconhecer, respeitar e valorizar a riqueza das tradições afro-brasileiras.
Que possamos nos inspirar na força deIemanjá e de nossasancestrais, como Mãe Gilda de Ogum e Mãe Beata de Iemanjá,
para continuar enfrentando os desafios, mas também criando espaços de
celebração, união e esperança. O Presente de Iemanjá é um símbolo do nosso
compromisso com a luta e com a vida plena. Venha somar suas forças e sua fé
nessa caminhada por direitos, respeito e justiça.
Por um presente e pela construção deum futuro ancestral onde a dignidade, a liberdade religiosa e as tradições
ancestrais sejam plenamente respeitadas!
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* Renata Souza é Deputada Estadual,autora da Lei que institui o Abril Verdeno estado do Rio de Janeiro, cria da Favela da Maré, jornalista e doutora em
Comunicação e Cultura pela UFRJ. Feminista negra, preside atualmente a Comissão
da Mulher da Alerj. Foi reeleita a deputada estadual mais votada da história.
** Pai Dário é um homem negro,babalorixá do Ilê Axé Oníṣègùn,jongueiro, coreógrafo, educador e gay. Pai Dário desde cedo teve o terreiro e a
cultura popular como sua identidade. Sua trajetória é marcada pela luta política
por dignidade para os povos de terreiro, população negra, de favela e LGBTQIA+.
É responsável religioso pelo Presente de Iemanjá do Arpoador, produtor e
diretor artístico da Cia de Aruanda.