Atuação da OABRJ leva caso Ágatha Félix a júri popular
Representantes da família, membros da CDHAJ apresentaram testemunhas do crime, ocorrido em 2019 no Complexo do Alemão, e demonstraram indícios de autoria por parte de policial militar
Num cenário em que a maioria dos inquéritos nos quais policiais civis, militares ou penais figuram como acusados de homicídios sequer chegam ao Judiciário fluminense, sendo arquivados porque a legítima defesa foi reconhecida ou por falta de provas do homicídio (dados do estudo “Letalidade Policial no Rio de Janeiro e Respostas do Ministério Público” conduzido pelo Fórum Justiça, que analisou 4.527 casos ocorridos entre 2011 e 2021), a OABRJ, por meio da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária (CDHAJ), está conseguindo que o caso Ágatha Félix contrarie essa estatística. Ágatha foi baleada aos 8 anos de idade, dentro de uma kombi no Complexo do Alemão, quando voltava de um passeio com a mãe, Vanessa Francisco Sales, em setembro de 2019.
Após quase três anos e meio atuando como representantes dos pais de Ágatha (os assistentes de acusação no processo), desde os primeiros momentos, no Instituto Médico Legal, os representantes da OABRJ preparam-se para enfrentar uma nova fase, agora perante o tribunal do júri. Na quarta-feira, dia 12, o juízo da 1ª Vara Criminal da Capital exarou sentença de pronúncia no bojo da ação penal em que o policial militar Rodrigo José de Matos Soares é réu pelo homicídio.
A pronúncia é a decisão judicial que reconhece ou não a admissibilidade da acusação formulada pelo Ministério Público, considerando plausível a acusação feita, diante da presença de elementos suficientes para submeter o réu ao julgamento pelos jurados, que serão responsáveis pela conclusão do caso. A sentença de pronúncia, portanto, não entra no mérito da causa, que ficará a cargo do tribunal popular.
Para conseguir levar o agente da Polícia Militar a júri popular, os procuradores da CDHAJ, os advogados Mariana Rodrigues e Rodrigo Mondego, que encabeçam a atuação da OABRJ, conseguiram reunir indícios fortes o bastante de autoria e provas da materialidade delitiva para apoiar que Ágatha foi vítima de homicídio qualificado por motivo torpe e sem chance de defesa da vítima.
A morte da criança teria sido resultado de um erro de execução do disparo por parte do policial, cuja motivação ao atirar com o fuzil era a de atingir duas pessoas que trafegavam pela localidade numa motocicleta em alta velocidade. Grande parte do esforço da CDHAJ foi identificar testemunhas e apresentá-las ao juízo, apoiando o trabalho da Polícia Civil.
Nas audiências de instrução, Vanessa Sales, mãe de Ágatha, contou que embarcou com a filha numa kombi, na localidade Nova Brasília, na volta de um passeio. Ao chegar na localidade da Fazendinha, diante do desembarque de passageiros, Vanessa tirou a criança do colo e a colocou sentada ao seu lado, quando ouviu um barulho muito forte, semelhante a uma bomba, sem que outros estampidos fossem ouvidos antes ou que houvesse presenciado nem tomado conhecimento de operação policial naquele momento. “Ágatha começou a chamar ‘mãe, mãe, mãe!’, tendo caído; após a queda da vítima, Vanessa não conseguia levantar Ágatha, momento em que percebeu um buraco nas costas dela”, diz o trecho da sentença que reproduz o depoimento de Vanessa.
As testemunhas ouvidas corroboraram o relato de que não havia operação policial no momento dos fatos e afirmaram terem visto o agente disparando com fuzil contra duas pessoas que passavam em alta velocidade numa motocicleta, sem que houvessem sido provocados. A defesa de Soares sustentou nas primeiras fases do processo que o policial militar agiu em legítima defesa, tese que foi contraditada por outras testemunhas.
O presidente da CDHAJ à época do homicídio, Álvaro Quintão, contou que a morte da menina marcou bastante o início de sua gestão na CDHAJ. “Considero um marco conseguirmos dar mais uma resposta à família nesta nossa busca por justiça. Conseguimos também mobilizar a advocacia membra da comissão, especialmente pela dificuldade de levar à frente as investigações de homicídios em áreas de comunidade no estado do Rio de Janeiro”.
Para Rodrigues, a denúncia do Ministério Público foi célere, mas o tempo que o Judiciário levou para produzir uma sentença de pronúncia faz pensar sobre o racismo que estrutura o sistema de Justiça.
“Isso fica patente quando se leva em conta a relativa rapidez da tramitação do caso Henry Borel, uma criança branca, ligada a um vereador. Continuaremos a buscar o desfecho que entregue justiça à família de Ágatha, num esforço para que a responsabilização deste policial militar sirva para que as forças de segurança pública reformulem os protocolos de atuação em comunidades carentes”.
Para Mondego, essa sentença de pronúncia rompe com um ciclo de injustiças em mortes de crianças em territórios de favelas.
“Infelizmente, na esmagadora maioria dos casos de mortes de inocentes em ações policiais em favelas, não se chega à autoria do crime. E, quando se chega, mais raramente ainda caminha até a pronúncia para o júri popular. Em suma, é uma vitória da civilização contra a barbárie.”
O presidente atual da CDHAJ, Ítalo Pires, diz que tão importante quanto penalizar os responsáveis pela morte da menina Agatha Felix é, a partir da situação concreta e da mobilização social por ela causada, debater os paradigmas da política de segurança pública fluminense, que, há décadas, gera sistematicamente situações absurdas como essa.
“Por isso, a intervenção da Comissão de Direitos Humanos da OABRJ no processo é fundamental", acredita.
O homicídio inspirou a Lei Ágatha (Lei 9.180/21), que garante prioridade de investigação a crimes cometidos contra a vida de crianças e adolescentes no Rio de Janeiro. Em 2021,de forma inédita, a CDHAJ invocou a norma, de autoria das deputadas Dani Monteiro e Renata Souza, ambas do PSol, e da deputada Martha Rocha (PDT), para pedir à Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense celeridade na apuração do assassinato das primas Emily Victoria da Silva e Rebecca Beatriz Santos, de 4 e 7 anos.
OAB