A ocupação das mulheres na linha de frente da política brasileira se dá a passos lentos e estéreis, ainda que o país tenha eleito a sua primeira presidenta em 2010, com a chegada de Dilma Rousseff ao Palácio do Planalto. A dominação social e histórica do patriarcado sobre os corpos, vontades e desejos femininos gestou uma política infecunda aos propósitos de equidade de gênero em todas as esferas de poder. Assim, considero extremamente importante desvendar e articular os processos de luta das mulheres, em especial as negras, na tomada desse poder. Há que se compreender ainda as estratégias de políticas de visibilidade e/ou invisibilidade social e midiática, que tanto podem proteger quanto vulnerabilizar a própria existência dessas mulheres. Dentro desses propósitos, proponho a formulação e conceituação da expressão “feminicídio político” para caracterizar, categorizar, denominar e classificar a execução sumária da vereadora Marielle Franco, em 14 de março de 2018. Um crime bárbaro, há exato um ano e meio sem resolução.
A formulação de um novo conceito sociológico e político que compreenda casos como o de Marielle é urgente. É relevante o empreendimento desse esforço de categorização da expressão “feminicídio político”, uma vez que, em jargão jurídico, aquilo que não se denomina não existe. E o assassinato de lideranças femininas à frente da política é algo real em nossa sociedade e, em especial, no Brasil, mas pouco visibilizado e problematizado na mídia. O patriarcado deixou o legado de invisibilização das mulheres em vida e em morte. E não seria diferente com aquelas que ousaram e ousam estar na linha de frente da política, seja esta institucional ou não. O feminicídio político traz consigo uma das faces mais cruéis da vulnerabilidade da mulher na vida política.
O feminicídio se tornou um debate nacional apenas quando foi reconhecido por lei como um crime em 2015. Segundo as Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres, o termo denomina as mortes violentas das mulheres em razão de gênero, ou seja, por sua “condição” de mulher. No Brasil há 13 assassinatos de mulheres ao dia, e a maioria delas é negra, segundo o Atlas da Violência de 2019, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O estudo aponta o crescimento em 20,7% da taxa nacional de feminicídio entre 2007 e 2017. Em uma década, aumentou em 60% o índice de assassinatos de mulheres negras, enquanto o de mulheres não negras aumentou em 1,7%. Nesse sentido, o assassinato de Marielle Franco pode ser incluído nos índices de aumento de feminicídio negro no país. Sem dúvida, o machismo e o racismo são gatilhos letais para nós, mulheres negras.
Dessa forma, a conceituação de feminicídio político parte da observação inquietante do papel feminino na política e o contexto sobre o qual ocorre a execução sumária de uma mulher com carreira ascendente no parlamento. Marielle foi eleita por 46.502 pessoas que compreenderam que toda a sua luta contra as desigualdades sociais, em especial as de gênero, raça e classe, é necessária para que a humanidade não se desumanize. A interrupção de sua escalada política se justifica porque Marielle ameaçou os podres poderes aliados às máfias. Algo que também custou a vida da juíza Patrícia Acioli, ao prender milicianos em São Gonçalo, em 2011; e da Irmã Dorothy Stang ao denunciar fazendeiros latifundiários no Pará, em 2005.
Ao “erguer a voz”, uma expressão de nossa transição de objeto para sujeito, de acordo com Bell Hooks, conclui-se que Marielle desafiou os poderes políticos e econômicos dos homens da elite branca brasileira. Portanto, a busca por uma formulação que trafegue entre a práxis e a teoria para que possa qualificar, caracterizar, denominar e categorizar o que de fato representa a execução sumária de Marielle Franco para a sociedade é inadiável.
Renata Souza é deputada estadual (PSOL-RJ) e foi assessora de Marielle Franco
O Globo