Ajuda jurídica a moradores do Jacarezinho avança após maior chacina do RJ
Sem mandado, policiais arrombaram o portão da casa de João Escobar, morador de Jacarezinho, na Zona Norte do Rio, no início de maio. Eles reviraram sua residência em busca de algo ou alguém não especificado, e usaram sua laje como base, disparando vários tiros durante a operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro. Naquele dia, 28 pessoas morreram.
Para levar acesso à Justiça aos moradores das comunidades também em situações como essa, o LabJaca, laboratório de dados e narrativas criado por jovens negros do Jacarezinho, fez uma parceria com a DP-RJ (Defensoria Pública do Rio de Janeiro). Com isso, defensores vão até a comunidade orientar pessoas sobre seus direitos e, se preciso, como requisitá-los judicialmente.
A gente não pode mais aceitar que nossos direitos só sejam conhecidos após uma violação tão grave como aconteceu no dia 6 de maio."
Mariana Galdino, cofundadora do LabJaca
Chamada de Defensoria em Ação, a iniciativa funcionava como piloto até as execuções de maio. Depois da ação policial, foi acelerada, explica Galdino.
"Planejávamos que o projeto promovesse nas favelas a atuação da defensoria, que já deveria ser um direito. Algumas questões, inclusive a pandemia, fizeram com que isso não acontecesse. Por conta da chacina, a Defensoria esteve mais presente no último mês", enfatiza.
Além do acolhimento, as pessoas impactadas diretamente pela chacina do Jacarezinho terão datas específicas para serem atendidas fisicamente pelos defensores. Nos outros dias, eles acompanhando os casos por telefone.
Segundo um familiar de um dos mortos, que pediu para não ser identificado por questões de segurança, a orientação recebida tem sido fundamental. Ele conta que, antes, outras pessoas pediram a ele que fosse às autoridades e dissesse coisas que, por fim, poderiam colocar sua vida em risco.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 (levantamento mais recente feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com dados do ano de 2019), 74,4% das vítimas de homicídio no Brasil eram pessoas negras.
Entre as pessoas mortas por policiais, 79,1% são pessoas negras. Na esfera do poder público, não existe uma divulgação transparente de dados oficiais nacionais sobre homicídios ou sobre mortes provocadas por policiais. Tampouco sobre as investigações e punições de homicídios.
Além disso, parceiros do projeto dentro do Jacarezinho fazem uma triagem de outras situações. Antes de levar os casos à Defensoria, avaliam se é possível resolvê-las judicialmente. Feito isso, marcam um horário para as pessoas encontrarem os agentes públicos quando eles estiverem na comunidade.
Guilherme Pimentel, ouvidor da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (centro), durante visita de defensores ao Jacarezinho; ao lado, o líder comunitário, Rumba Gabriel, e a deputada estadual Renata Souza (PSOL-RJ) Imagem: Divulgação/DP-RJ
Escobar, que não era alvo da operação, conta que os prejuízos foram psicológicos, dados os abusos policiais sofridos pela família dentro de casa, e também financeiros.
Na ocasião, ele conta que os policiais chegaram a debochar dos estragos feitos: "Fica tranquilo, senhor, que o delegado vai pagar o teu portão". A promessa não foi cumprida. Este caso poderia ser levar à Justiça, mas, segundo o ouvidor da DP-RJ Guilherme Pimentel, muitos moradores têm medo de sofrer represálias.
Ele explica que qualquer cidadão que tenha sofrido um dano patrimonial, moral, físico ou psicológico a partir de uma violação tem direito a indenização. No entanto, "a dificuldade é comprovar esse dano e que isso foi gerado por um agente público", diz.
É nesta situação que se encontra Jaime do Carmo, de 57 anos. Dono de uma farmácia alvejada com mais de 30 tiros durante a operação, ele calcula um prejuízo em cerca de R$ 20 mil, com perdas de produtos, móveis e queda de vendas com o fechamento do estabelecimento por três dias para reparos.
Quando voltou a funcionar, a farmácia também teve que lidar com a devolução de produtos que tinham projéteis de bala. "Como vou provar que foi a polícia?", questiona o comerciante.
Jaime do Carmo, dono de farmácia no Jacarezinho, mostra projéteis e cartuchos de balas encontradas em fraldas e absorventes vendidos por sua loja após a maior chacina do RJ, que deixou 28 pessoas mortas Imagem: Bruno Itan/UOL
Além da falta de acesso e do medo de represálias, outros motivos afastam os moradores do contato com órgãos do Judiciário, como a falta de informação ou entendimento sobre a linguagem dos processos e a percepção de baixa efetividade dos casos ou seletividade da Justiça, afirma Pimentel.
Antes da chegada do poder público, as lideranças comunitárias tentam diminuir as necessidades mais urgentes. A Associação dos Moradores do Jacarezinho, por exemplo, conta com um diretor jurídico e um advogado e promove regularmente mutirões com advogados voluntários. Mas as demandas são muitas para poucos profissionais.
Jaime do Carmo, dono de farmácia no Jacarezinho, mostra projéteis e cartuchos de balas encontradas em fraldas e absorventes vendidos por sua loja após a maior chacina do RJ, que deixou 28 pessoas mortas Imagem: Bruno Itan/UOL
"Chegando, a Defensoria Pública vai mostrar aos moradores que, apesar de morarem em um lugar com pouca assistência, eles serão ouvidos, poderão debater, entender e resolver seus problemas", explica Leonardo Pimentel, presidente da associação.
Essa mobilização pode tornar comuns atitudes como a da bacharel de direito Natália Andrade, de 29 anos. A moradora no Jacarezinho já processou uma empresa de cartões de crédito e outra de telefonia por fazer cobranças indevidas.
"Os processos já foram finalizados há um bom tempo e eu recebi [a indenização] direitinho. Mas muitas pessoas não sabem que, para processos de até 20 salários mínimos, não precisa de advogado. Por falta de conhecimento sobre seus direitos e também pela burocracia para o acesso, as pessoas acabam deixando pra lá", diz Andrade.
Uol