A violência política de gênero como ameaça à democracia
Numa conjuntura de extremo acirramento da polarização na política entre direita e esquerda, há de se zelar também pelo decoro parlamentar no que se refere às relações entre gêneros
Decoro, no que se refere ao comportamento na política, significa agir com dignidade e honradez. A imunidade parlamentar e a liberdade de expressão não eximem, portanto, os políticos da responsabilidade com o que dizem em seus discursos e declarações. Aos políticos as leis ainda não liberaram o uso de palavras para difamar, caluniar, ofender, agredir ou ameaçar ninguém. Há, inclusive, no Parlamento, a previsão de sanções para casos de quebra de decoro, prática indecente que tem sido, no entanto, acolhida como natural no meio político. Não pode e não tem que ser assim.
Numa conjuntura de extremo acirramento da polarização na política entre direita e esquerda, há de se zelar também pelo decoro parlamentar no que se refere às relações entre gêneros. Não se trata, afinal, de mero adereço regimental, mas, sim, de elemento essencial de garantia do rito democrático.
Primeiro, ignora-se um xingamento. Depois, uma ofensa qualquer. Por fim, vêm declarações de ódio, ameaças e até mesmo crimes políticos. Ou alguém a esta altura ainda tem alguma dúvida de que a vereadora Marielle Franco foi vítima de um feminicídio político em 2018?
Se três anos depois do crime, ainda não se faz possível afirmar quem mandou matar Marielle, temos, porém, provas em fartura de quem comemorou a seu assassinato e até hoje ostenta como lembrança uma placa quebrada, emoldurada e pendurada na parede de seu gabinete — justamente a placa confeccionada por movimentos de mulheres em homenagem à exemplar companheira feminista, antirracista e defensora dos direitos humanos.
Além da quebra da placa, entre outros insultos à memória de Marielle, o mesmo deputado estadual bolsonarista tem sistematicamente dirigido a sua metralhadora verbal contra mim. No episódio mais recente, em agosto, durante sessão plenária na Alerj, tal deputado, cujas atitudes contradizem o sobrenome de significado amoroso, acusou-me de maneira caluniosa, em enredo falacioso, de ter recebido um “capilé” por suposta venda da história de Marielle para uma grande emissora.
Em representação protocolada na Mesa Diretora da Assembleia, solicito que sejam apuradas a quebra de decoro e a injúria. Considero, contudo, a importância de que seja reconhecida nesses fatos a gravidade dessa violência política como ameaça à própria razão da Política. Segundo definição da Hannah Arendt, afinal, “[...] o significado da Política [...] é que os homens e mulheres em sua liberdade possam interagir uns com os outros sem coação, força nem dominação, como iguais entre iguais [...] conduzindo todos os seus assuntos por meio do diálogo e da persuasão”.
Nesse sentido, temos diante de nós o desafio urgente de desnaturalizar a quebra de decoro como forma de prevenir a banalização da própria violência política de gênero. Esse desafio passa pela responsabilização daqueles que, entorpecidos pelo ódio, não entenderam ainda que as mulheres negras e faveladas que hoje ocupam a Política vieram, como eu, para ficar e lutar. Não vão nos calar.
O Dia
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