A luta pela saúde da mulher
Por Renata Souza (*)
Pouca gente sabe que nesta terça-feira (28) celebramos o Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher e o Dia Nacional pela Redução da Mortalidade Materna. Eis uma data que nos convoca a reconhecer a necessidade de mais debate público sobre o assunto.
E pensar sobre a saúde da mulher nos exige reflexão, para começar, sobre o conceito de equidade em saúde. Equidade, na perspectiva da justiça social, significa na verdade uma “justa distribuição desigual”, numa realidade feita de desigualdades que atravessam as singularidades. A promoção da saúde e do bem viver das mulheres exige, portanto, um olhar sobre toda a diversidade e a complexidade do próprio universo feminino, em sua interseccionalidade de gênero, classe, raça e território. Milhões de mulheres em todo o mundo têm as chances de vida reduzidas apenas em função da sua identidade de gênero.
No caso dos países em desenvolvimento, a qualidade da assistência integral à saúde das mulheres é ainda diretamente impactada pelas desigualdades socioeconômicas, especialmente no caso das mulheres negras. Entre as mulheres mortas em 2022 em decorrência de complicações na gravidez ou no parto, 68% eram pretas ou pardas, enquanto 29,7% eram brancas, segundo dados preliminares do SUS referentes ao mesmo ano, o número de mortes maternas entre mulheres brancas (46,56/100 mil) foi abaixo da metade dos casos entre mães pretas (100,38/100 mil) e mais baixo do que entre as pardas (50,36/100 mil). O aborto, quarta causa de mortalidade materna no Brasil, representou 9,4% das mortes em 2022.
Esses dados gritam por si sobre o tamanho do desafio das mulheres em luta por equidade no acesso à saúde integral e aos direitos reprodutivos no Brasil. De acordo com o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher 2024, do Ministério das Mulheres, o Brasil até tem reduzido os seus índices gerais de morte materna. Saímos da realidade de 1990, de 141 mortes por 100 mil nascidos vivos, para um índice de 55/100 mil em 2019. Embora possamos reconhecer e comemorar os avanços, ainda estamos bem distantes da meta de redução da mortalidade materna para níveis inferiores a 30/100 mil até 2030.
E houveram retrocessos nos anos da pandemia de covid-19, com um pico de 113 óbitos por 100 mil nascidos vivos em 2021, ano em que a mortalidade materna por causas indiretas, ou seja, por doenças pré-existentes ou adquiridas durante a gravidez, representou 64% das mortes maternas no Brasil. Já em 2022, ano em que a vacinação contra a covid-19 estava mais avançada, o indicador recuou a 57,7/ 100 mil nascidos vivos. Trata-se de um nível similar ao de 2019 (57,9/ 100 mil) e que ainda merece atenção das políticas públicas de assistência integral à saúde para a sua redução. A maior parte das mortes maternas no Brasil ocorre, afinal, em decorrência de causas diretas, que são a hipertensão, hemorragia, infecção e aborto. Tais quadros estão relacionados, muitas das vezes, com a demora no recebimento de cuidados e de tratamento adequado no hospital, quando não raro há negligência no processo de atendimento. Tal carência na assistência em saúde impacta sobretudo as mulheres em situação de vulnerabilidade econômica e social, na maioria mulheres negras. Falar de saúde da mulher brasileira também exige reconhecer a situação das meninas afetadas pela gravidez precoce. Em 2022, 12% das parturientes tinha de 15 a 19 anos. Nesse ano, entre os 10 e os 14 anos nada menos que 14.262 crianças pariram no Brasil.
Silvana Granado, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/ Fiocruz), desenvolveu estudos que identificaram que, ao comparar a assistência entre mulheres brancas, pretas e pardas, observou-se que as mulheres pretas têm um pré-natal muito mais inadequado, recebem bem menos informação sobre o trabalho de parto e sobre possíveis complicações durante a gravidez, e têm mais dificuldade em encontrar hospitais com vaga para assistência ao parto, além de sofrerem bastante mais com a violência obstétrica.
Dessa forma, observamos como o racismo institucional e o racismo obstétrico se concretizam nas desigualdades que adoecem e matam preferencialmente as mulheres negras em nosso país.
A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS) usa o conceito de equidade de gênero para se referir às características socialmente construídas de mulheres e homens, tais como as normas, papéis e relações existentes entre eles. Dessa forma, as expectativas de gênero variam de uma cultura para outra e podem mudar ao longo do tempo. Com isso, quando falamos na saúde da mulher é necessário discutir como a questão de gênero e as desigualdades socialmente construídas interferem diretamente na saúde das mulheres, além de trazer para o contexto do cuidado as especificidades e singularidades como etnia, classe social, identidade de gênero, acesso à educação, renda, moradia etc.
A mortalidade materna, por exemplo, é um desfecho na maioria das vezes totalmente evitável. Precisamos, portanto, lutar pelo fortalecimento do SUS, assim compreendido como ferramenta estratégica de disputa por equidade no nosso país e para a superação, no âmbito da saúde integral, das desigualdades de classe e raça que agravam a nossa condição de gênero. Um futuro de mais saúde das mulheres brasileiras começa numa atenção básica que possibilite a promoção das boas práticas de assistência à gravidez, ao parto, ao nascimento e no combate ao racismo estrutural em seus impactos nas políticas de saúde pública. Precisamos seguir vivas e com saúde nas lutas por um país equânime e livre.
(*) gestante, deputada estadual (Psol-RJ), presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Alerj, doutora em Comunicação e Cultura.
ABI