A escritora Valéria Barbosa, nasceu na Praia do Pinto. Depois da remoção, morou durante décadas na Cidade de Deus. Lá, refez sua história de luta e vida
por Gizele Martins
Valéria Barbosa, de 63 anos, é escritora, cantora, comunicadora, educadora e, sem dúvida, uma referência da Cidade de Deus, favela que morou durante décadas, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Nasceu na Praia do Pinto, no Leblon, na Zona Sul, favela que é hoje apenas uma memória da cidade, pois sofreu um incêndio em 1969 deixando 9 mil pessoas sem casa. No papo que fizemos com Valéria, ela contou sobre a infância na Praia do Pinto, sobre o processo de criação das suas obras entre livros e CDs. Falou ainda dos seus filhos e netinha, afinal, eles também fazem parte de sua vida e são, assim como a favela, inspirações para as suas poesias e músicas. Sim, Valéria é a nossa ‘Destaques das Favelas’ desse mês, da Mandata Renata Souza. Você não pode deixar de ler:
Para começar o papo, Valéria falou sobre a família e contou que a sua mãe nasceu em Minas Gerais e seu pai veio de Campos dos Goytacazes, interior do estado do Rio de Janeiro. Assim como a história de muitos moradores de favelas, os dois não tiveram oportunidade de estudar. A mãe de Valéria não conseguiu terminar os estudos porque começou a trabalhar como doméstica ainda criança. Seu pai, analfabeto, era chefe da lavanderia do Clube de Regatas dos Flamengo. Nessa época em que seu pai trabalhava no Clube, eles moravam na favela Praia do Pinto, no Leblon.
Relembrando memórias dessa época, Valéria contou que "havia bastante enchentes e quando isso ocorria ficávamos abrigados numa escola do bairro. Lá aprendemos a dividir doações e a conversar uns com os outros.”, disse. A escritora afirmou também que conviveu com muitas outras faltas de direitos no local: saneamento, água e luz. Ainda nesse período, fez a 1ª comunhão na Igreja Santos Anjos e o responsável era Dom Helder Câmara. “Eu frequentava ainda a igreja Anglicana e gostava de ir lá cantar, fazíamos uma fila e a D. Enemar nos levava. Eu adorava escutar o som dos atabaques e aprendi a cantar todos os pontos que ouvi”, contou.
A sua brincadeira preferida era enfrentar o meu pai, subir no telhado e dividir as tripas da barrigada de porco, andar na lata. Azulejos eram o meu sonho de consumo. Depois da remoção que sua família sofreu na Praia do Pinto, eles foram morar na Cidade de Deus (CDD). “Me casei com um morador da CDD, temos três filhos, tenho uma neta que amo muito, mas que na realidade é neta da minha irmã”. Foi na CDD, que ao longo da sua vida, ela construiu e se inspirou a escrever e publicar seus livros de poesia. Junto a outros moradores da Cidade de Deus realizou cursos de comunicação comunitária, o que fez surgir o conhecido jornal local ‘A notícia por quem vive’.
Além das suas publicações, dos CDs, do trabalho na comunicação comunitária, Valéria trabalhou como babá e empregada doméstica, em creche, como professora de Educação Infantil na igreja. Fez concurso público em 1980 e foi trabalhar na Fundação Estadual de Educação do Menor, atual Fundação para Infância e Adolescência (FIA). Nos anos 90 começou a trabalhar somente na Cruzada do Menor. Concomitante em 1990 trabalhou na Cruzada do Menor como pedagoga e coordenava 150 crianças e 75 idosos da Cidade de Deus e comunidades próximas.
“Em 1992 pedi ao presidente da FIA que me deixasse ser um braço da FIA na CDD por conta de eu ter percebido que havia várias crianças vítimas de violência doméstica na creche que eu coordenava. Pedi ajuda da PUC, consegui uma equipe para fazer este trabalho, mas acabou que ele passou a ser realizado na Associação de Moradores. Atendemos inúmeras famílias ali. Por causa desse trabalho me especializei em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes. Hoje estou aposentada”, explicou.
Hoje, Valéria mora no Anil, em Jacarepaguá. Ela, aos seus 63 anos, está estudando Letras e, em breve, vai começar um curso de produção cultural. Nesse período da pandemia, com objetivo de unir os amigos poetas e que ultrapassam fronteiras, organiza há um ano o ‘Sarau na Favela’ online. Nos parágrafos acima, colocamos um pouquinho do que é a grandeza dessa mulher guerreira e de luta que é a Valéria. Como pudemos ver, ela transformou suas experiências de vida, em memórias, em construções de uma outra cidade e que cabiam a todos. Viva Valéria, viva a memória viva da resistência favelada!
Ah, e para não terminar esse texto de memórias e homenagem à luta e vida de Valéria sem falar de seus livros e CDs, deixamos aqui o título de cada uma deles. Elas podem ser adquiridas entrando em contato com a própria escritora.
Confira aqui as obras: Guerreira – 1995 de poesias, independente; doação de Murilo Brasil; Coração Preso na Cômoda da Incomodada vida, onde conto com o olhar da criança a minha história na Praia do Pinto e a transferência para a Cidade de Deus, 2012 pela Editora Livre Expressão; Os Grandes Mestres Guardiões da Cidade de Deus – Fazedores de Destino, 2012 Editora Novo autor; 200 Gritos por Liberdade – Ganhou prêmio do MINC em 2018 em homenagem aos 200 anos da Independência do Brasil – Poesias; E-Book “Da Favela para o Mundo”, Coletânea com diversos poetas do Brasil e do Exterior; CD África no Sangue – 2006 com 18 cantigas de louvor; CD Caminhos Abertos – 2008 com 17 cantigas de louvor; CD Oceano em mim; Produção do 1º Livro da Dona Tuca Juntando Poemas e Tuca o Diamante.